Carta-compromisso: como os movimentos cívicos estão conseguindo exercer mandatos sem os partidos

Não se nega a crise de representatividade vivenciada pelos partidos no país, mas são eles, querendo ou não, que se submetem a um rigoroso controle de financiamento estabelecido pela legislação

Embalados pela crise de representatividade dos partidos políticos no país (mais perceptível a partir das ainda vívidas manifestações de 2013), movimentos ditos apartidários têm logrado êxito em formar (na acepção escolar da palavra) – e eleger – candidatos. Apenas para ilustrar, em sua primeira eleição (2018) o RenovaBR elegeu 17 políticos, dentre os 133 formados no seu curso. Em 2020, o número de eleitos subiu para 147.

Como no Brasil, por dicção constitucional, as candidaturas consubstanciam monopólio dos partidos políticos, os movimentos as pulverizaram em diversas legendas, sem uma diretriz definida. Ou seja, os partidos foram pragmaticamente utilizados para a eleição de integrantes desses agrupamentos.

E não se vislumbra nenhum constrangimento por ambas as partes nessa troca de interesses. Os movimentos precisam dos partidos para lançar candidatos. E aos partidos interessa contar com candidatos capacitados pelos movimentos.

A rigor, é preciso dizer desde já, não se percebe tanta diferença na prática adotada pelos partidos para com tais movimentos cívicos quando em comparação a candidaturas prospectadas em outros ambientes da sociedade civil, tais como sindicatos, associações, ONG’s, e, até mesmo, entidades religiosas.

Manifestação em junho de 2013 em São Paulo. Foto: Marcelo Camargo/ABr.

Sempre há uma troca de interesses – sem nenhum tom pejorativo neste ponto. Os temas defendidos pela sociedade civil em suas mais variadas ramificações encontram abrigo nos partidos, detentores do poder de lançar candidatos, e estes últimos, a seu turno, exercem a democracia representativa.

Só que no caso dos movimentos cívicos – pelo menos dos mais articulados e estruturados até aqui – convencionou-se a exigência de uma dita carta-compromisso assinada pelos partidos. A ideia é de que realmente fique claro ser o partido mero instrumento de acesso ao poder, mas o parlamentar – aluno do movimento – deve somente a este último alguma espécie de disciplina.

Não demorou para que, uma vez eleitos, referidos parlamentares efetivamente ignorassem as orientações da bancada, bem como qualquer tipo de tentativa de ingerência no exercício do seu mandato.

O episódio mais conhecido se deu por ocasião da votação da reforma da Previdência, em que alguns parlamentares do PSB e do PDT (todos integrantes de movimentos cívicos) votaram contra a orientação das agremiações (e a favor da reforma, portanto).

Os partidos – que talvez possam ter subestimado a força cogente da tal carta-compromisso – passaram então a ameaçar esses parlamentares com a instauração de procedimentos ético-disciplinares. Tudo ficou realmente no campo da ameaça porque, certo ou errado, é pacificado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) o entendimento de que a expulsão não gera perda do mandato por infidelidade partidária.

Os movimentos cívicos tanto sabem disso que, ao invés de aguardar o desfecho dos procedimentos internos, mobilizaram estes mesmos parlamentares a moverem ações de reconhecimento de existência de justa causa, exatamente tendo como causa de pedir a violação à carta-compromisso. Na prática, a procedência desse tipo de ação exonera o parlamentar não só de se manter vinculado ao partido que o elegeu, mas a qualquer partido – a filiação é exigível para se candidatar, mas não para exercer o mandato.

E deu certo.

Em abril, o TSE entendeu, por 4 votos a 3, que, se houve acordo expresso garantindo a autonomia de posicionamento, ele se sobrepõe a qualquer orientação partidária para votação (caso do deputado federal Felipe Rigoni/ES, integrante e fundador do Movimento Acredito x PSB). Um mês depois, num quórum já mais estendido (6×1), a também deputada federal Tabata Amaral – outra integrante e fundadora do mesmo movimento – foi autorizada a se desfiliar do PDT amparada na mesma carta-compromisso.

Felipe Rigoni: TSE entendeu que acordo expresso garantindo a autonomia de posicionamento se sobrepõe a orientação partidária para votação em plenário. Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados.

Para justificar a decisão, falou-se que “os movimentos têm se mostrado capazes de projetar suas propostas e lideranças na disputa eleitoral a partir de um locus externo ao ambiente partidário” e que “é preciso evitar uma leitura excessivamente fechada da Constituição” neste tema.

As justificativas parecem desafiar a ordem constitucional vigente. Não se cogita (ou nunca se cogitou até aqui) de projeções eleitorais paralelas aos partidos políticos precisamente porque a leitura da Constituição não sinaliza qualquer possibilidade de flexibilização em tal sentido.

Para o TSE, “sua atuação política [dos movimentos cívicos] se difere da de outros movimentos sociais, porque assume, entre seus principais objetivos, o de capacitar cidadãos para concorrer às eleições”.

O argumento não convence. A rigor, qual exatamente o obstáculo para que sindicatos, associações e até mesmo igrejas criem (se já não criaram) suas próprias escolas de formação política? Neste caso, é possível, para exemplificar, que a CUT firme carta-compromisso com o PT para manter quadro parlamentar próprio no Congresso? Ou que a Igreja Universal assim o faça com o Republicanos?

Mais ainda: o cidadão capacitado que esteja desvinculado de qualquer tipo de associação não poderia, de igual forma, vindicar a assinatura de uma carta-compromisso para uma candidatura (completamente) independente?

Não se nega a crise de representatividade vivenciada pelos partidos no país, mas são eles, querendo ou não, que se submetem a um rigoroso controle de financiamento estabelecido pela legislação. O próprio TSE ressalva em sua decisão que “há ainda muitas questões em aberto, tais como a forma de financiamento e de transparência dessas entidades que, também, almejam eleger representantes”.

Da forma como ficou decidido, os movimentos (que firmaram a carta-compromisso com partidos) conquistaram o bônus de agir no parlamento como se partidos fossem, mas sem o ônus de serem vigiados como se partidos fossem.

Os casos devem chegar ao STF.

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