Todas as pequenas coisas

Tudo começou com um pontinho, menor do que a ponta de uma caneta. Era só um incômodo, um avermelhado que foi crescendo e, aos poucos, se destacando na superfície. Era quase como se fosse uma espinha, que a cada fluxo intenso de estresse, ganhava uma pífia quantidade de sangue e ia crescendo

Um olhar, um gesto, uma respiração. A rotina de um sobrevivente de AVC pode parecer sem graça à primeira vista, porém, é recheada de pequenas coisas que nos trazem frustrações e vitórias. Passamos a ter um olhar mais analítico a tudo, em que o “menos” é “mais”.

Tudo começou com um pontinho, menor do que a ponta de uma caneta. Era só um incômodo, um avermelhado que foi crescendo e, aos poucos, se destacando na superfície. Era quase como se fosse uma espinha, que a cada fluxo intenso de estresse, ganhava uma pífia quantidade de sangue e ia crescendo. Até que depois de anos, já estava no seu limite e estourou. Poderia ser uma espinha se estivesse na pele, mas ele resolveu crescer escondido, era introvertido. Nasceu e cresceu numa artéria na base do meu crânio, e ganhou o pomposo nome de aneurisma.

Meu aneurisma cerebral nunca me deu trabalho, era praticamente imperceptível. É verdade que sempre fui de ter enxaquecas, mas também sempre tive uma vida complicada, e talvez por isso, nunca percebi que o tinha na cabeça. Se ele deu sinais, estes eram mínimos, ao ponto de serem ignorados no meu dia a dia. Até hoje ninguém soube me responder se esse aneurisma nasceu comigo ou surgiu no meio do meu caminho da vida. Para mim e para os médicos, seu surgimento é uma incógnita.

Às vezes me pego vendo fotos antigas e me pergunto: Será que, nesse tempo, ele já estava lá? Se sim, qual seria o seu tamanho? Será que isso importaria? No mundo em que vivemos somos tão acostumados a admirar apenas coisas imensas, que geralmente não damos importância às coisas pequenas. Mas elas também são grandiosas do seu jeito.

Meu aneurisma provavelmente tinha menos de dez milímetros quando estourou, e deu um trabalhão. Quase não deu tempo de eu ser salva, quase uma equipe cirúrgica altamente qualificada não foi o suficiente para estancar tanto sangue. Tudo porque a minha “espinha interna” furou, num buraquinho que talvez seja do tamanho de uma vírgula. Não tem como sobreviver a isso e não filosofar sobre as pequenas coisas.

Quem sobrevive a um AVC, e tem oportunidade de se recuperar dele, passa a dar mais valor ao milímetro e ao miligrama. Eles se tornam maiores do que o tempo, já que a nossa recuperação é lenta e baseada nas miudezas das nossas ações. Ninguém se salva de um AVC dando palestra ou cambalhota (apesar de essa vontade existir em alguns), tudo recomeça em pequenas atividades para quem vê de fora, porém, elas são gigantescas para o paciente. 

Lembro da primeira vez que me colocaram em pé, logo após a minha primeira cirurgia. Deveria ser nos meus primeiros dias após acordar do coma. Sentia muita dor na cabeça (como se tivessem me dado uma machadada, juro!), não conseguia apoiar os pés no chão e minha respiração e circulação se modificaram tanto com a diferença de posição e altura, que desmaiei de tanto esforço. Depois vieram as outras tentativas com a equipe de fisioterapia do centro de tratamento intensivo. Eles me levantavam e a função dada a mim era somente a de resistir para não desmaiar. Muita gente reclama de se levantar da cama (eu era uma delas), mas durante um tempo esse era o meu maior desafio do dia. Era muito pouco, mas ao mesmo tempo era muito. Era o único caminho para me recuperar.

Depois vieram os tremores no braço lesionado, acompanhados por uma coceira por dentro da pele. Cheguei até a pensar que estava com bicho geográfico (era só o que faltava, né?), mas um dia o fisioterapeuta me disse que isso era sinal da mobilidade voltando. Naquela época, meu braço era retorcido ao meu tronco, e fiquei tão feliz com essa notícia que esperava ansiosamente por aquelas sensações. Os tremores eram tão sutis que só especialistas os viam, já que eles que estavam ao meu lado durante o estímulo. Eram movimentos mínimos e frágeis, mas indicavam um trabalho imenso para um cérebro tão machucado.

O lema de todo sobrevivente é “um dia de cada vez”. Talvez porque se a gente pensar só no todo, a única saída possível seja chorar e desistir. Dividindo os desafios em dias, fica menos difícil suportar o peso da frustração e dá tempo para se concentrar nos mínimos avanços, que ficam cada vez mais perceptíveis no tedioso cotidiano da recuperação. E assim: aos pouquinhos, com muita dor física e emocional, vamos voltando a andar, a falar e a mexer a mão.

Infelizmente não tenho vídeos do meu processo de reabilitação, porém todos os dias recebo vídeos de sobreviventes e me emociono. Sei o valor de cada tremor, gesto e passo. Com certeza são frutos de incertezas e muitas lágrimas derramadas. Assisto a cada um deles e lembro da minha evolução. Sinto-me abençoada por essas mensagens porque elas me recordam da minha história, principalmente desse pedacinho que não quero esquecer. Foram momentos dolorosos, difíceis e intensamente meus.

No imenso universo da internet tudo também começa ou acaba por um clique. Hoje todo mundo tem um poder na ponta dos dedos, pode se conectar ou se desconectar como bem quiser. É muita coisa para uma falangeta, agora ela pode mudar o mundo e foi assim que muitas delas mudaram o meu. Alguns meses após o meu acidente vascular cerebral, entrei em um grupo de apoio de AVC, numa conhecida rede social, e escrevi, com muito esforço, que estava sofrendo de solidão. Naquele mesmo dia, centenas de pessoas responderam a minha mensagem e se conectaram a mim. Não estou exagerando, foram quase duzentas novas solicitações de amizade. Essas pessoas, aos poucos, foram preenchendo o meu dia e fazendo toda a diferença na minha vida. Ainda fazem, as considero indispensáveis.

Acredito que se o início e o fim começam em um pontinho, o meio também seja feito de milhares deles. É uma pena os subestimarmos, porque é assim que vamos perdendo o fio da meada da nossa vida. São tantas as vezes que só percebemos que afetos se findaram apenas quando lhes é dado o ponto final, não é mesmo? Perdemos todos os olhares distantes, os descasos, as palavras mal-ditas e mal interpretadas… Todas essas coisas dóem, e talvez por isso sejam propositalmente esquecidas, nos deixando apenas incertezas e a eterna “culpa do outro”. E assim perdemos o meio (justamente o miolo), com seus tremores, faltas de ar e frios na barriga. Por medo de sofrer, a história na nossa cabeça fica fria e sem graça. Que ironia, nenhuma reabilitação existe sem essas partes.

Assim como cada vida, cada AVC é único, mas lidar com esses desastres mentais (tanto os da vida como os de um acidente vascular cerebral) se condensa em um mesmo processo de som e fúria, de suor e lágrimas. Toda recuperação exige coragem e resiliência, mas só as encontramos no meio do caminho. Só depois de ter percebido e aprendido o valor das pequenas coisas.

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