Receita de bolo

Mudar os ingredientes do nosso pensamento não é uma tarefa fácil, pois implica alterar um modus operandi de anos, mas no caso de uma pessoa emocionalmente abalada, isso não é questão de escolha, é sobrevivência

Maus pensamentos sempre vêm à tona quando enfrentamos uma frustração. Diante de um trauma psicológico, como no caso de uma lesão cerebral, eles se tornam catastróficos. Para dissolvê-los é preciso ressignificá-los, algo tão difícil quanto mudar uma receita de bolo.

Todo mundo tem uma receita de bolo na cabeça. A seleção dos ingredientes e o modo de fazer a massa, assim como o tempo e a temperatura para assar já estão decorados no fundo da memória, e vêm automaticamente à mente sempre que um gatilho é acionado. Pode ser que isso aconteça quando começa a chover e não se tem nada para fazer, ou quando estamos, de alguma maneira, emotivos. O fato é que, quando entristecemos, a tal receita vem à cabeça e temos a sensação de que é preciso fazer o bolo, cujo modo de fazer pode ter sido passado de geração para geração ou adquirido nas experiências da vida. E a tendência é a gente repetir a mesma receita, mesmo que aquele bolo esteja sempre seco e nem seja fácil de engolir. Foi o que o cérebro programou e a gente só obedece.

Quando se sobrevive a um AVC, o cérebro machucado tende a reproduzir essa tal receita insossa várias e várias vezes na nossa cabeça, só que nela os ingredientes são os nossos traumas, que se misturam numa massa chamada por neuropsicólogos de “pensamentos catastróficos”. É um ciclo do mal viciante em que a gente só pensa que a vida da gente acabou, que não haverá melhoras, que nos tornamos “inamoráveis” e que seria melhor não termos sobrevivido. Todo sobrevivente que conheci passou por isso (até hoje não encontrei uma exceção) e se essa receita de bolo não for urgentemente reformulada, o paciente se depara com uma depressão severa até o ponto de atentar contra a própria vida.

Acredito que não é preciso passar por um AVC para entender da gravidade do que estou escrevendo, porque todo mundo tem gatilhos emocionais que desencadeiam em uma sobremesa psíquica nada apetitosa. Mas, quando passamos por um trauma muito grande, como o de sofrer uma lesão no cérebro, só nos deparamos com ingredientes secos e com a validade vencida, e esse tipo de sensação parece impossível de ser combatido, porque faz parte da sequela neurológica. Todavia, segundo os especialistas, o único caminho é tentar reformular os ingredientes da nossa nova vida e assar um novo tipo de bolo, de modo que este seja mais saboreável.

Mudar os ingredientes do nosso pensamento não é uma tarefa fácil, pois implica alterar um modus operandi de anos, mas no caso de uma pessoa emocionalmente abalada, isso não é questão de escolha, é sobrevivência. Mais uma. Por mais que sejamos diferentes, todos os ingredientes vêm da nossa memória: uma espécie de feira livre para os nossos neurônios. Lá tem tudo de bom e tudo de ruim que passamos, o que amamos e detestamos. Os otimistas são frequentadores assíduos das barraquinhas das boas lembranças, compram sempre lá e enriquecem os vendedores de autoestima. Os pessimistas fazem exatamente o contrário.

Quando se sobrevive a um AVC, o cérebro machucado tende a reproduzir essa tal receita insossa várias e várias vezes na nossa cabeça, só que nela os ingredientes são os nossos traumas, que se misturam numa massa chamada por neuropsicólogos de “pensamentos catastróficos”.

No caso de pessoas que estão vivendo uma realidade traumatizante, há uma promoção diária de experiências difíceis. Então, o maior desafio é fazer com que elas se lembrem dos ingredientes doces de suas vidas, que podem ser simples (como um livro ou uma música) ou complexas (como o apoio emocional de pessoas queridas).  No meu caso, o primeiro item a se destacar foram os poemas de Manuel Bandeira, e confesso que o processo para os encontrar nem foi tão tumultuoso, pois ironicamente, era a única coisa que eu me lembrava de cor com a memória destroçada pós-AVC. Pois é, nossos amores conseguem transpassar as maiores barreiras, são mais fortes do que imaginamos.

Quando as primeiras boas sensações importantes forem identificadas, é preciso tentar inseri-las na receita do viciante pensamento catastrófico. Nesta hora é preciso ser valente para efetivar a troca de componente assim que o primeiro pensamento ruim vier à cabeça e o bolo tenebroso começar a ser reformulado. Voltando ao meu exemplo: quando eu queria chorar e dizer que não queria estar mais aqui, eu não dizia mais especificamente esta frase, mas que “queria ir embora para Pasárgada”, e continuava o famoso poema modernista. Isso mudava a minha realidade? Sinceramente não, mas aliviava o meu coração. O meu mundo pós-AVC com os poemas de Bandeira se tornou menos apocalíptico.

É claro que só este ingrediente não bastava para melhorar o meu ânimo, nenhum bolo emocional é feito só de poema ou trecho de música, mas de uma mistura de pedaços de nossa essência. Não é fácil encontrar cada item tão valioso: ele exige uma procura interna muito grande. E muitas vezes, a gente precisa que alguém de confiança nos guie até ele. Um bom amigo ou um terapeuta podem fazer toda a diferença.

Depois de encontrar outros novos ingredientes, é preciso testá-los na hora da mistura. Na prática tudo isso é muito difícil, porque o cérebro tende a rejeitar essa nova massa e a receita tende a desandar antes mesmo de ser finalizada. Nossa, como é difícil a gente ressignificar as ideias pré-estabelecidas de felicidade, sucesso e vida. Mesmo escutando, lendo e até mesmo conhecendo o tempo todo várias possibilidades de estruturar uma existência, na hora H parece que a cabeça não aceita essas hipóteses. Neste momento é preciso insistir nessas novas receitas até o cérebro finalmente aceitar aquela proposta: de que é uma nova vida e não o fim do caminho.

Quando as primeiras boas sensações importantes forem identificadas, é preciso tentar inseri-las na receita do viciante pensamento catastrófico. Nesta hora é preciso ser valente para efetivar a troca de componente assim que o primeiro pensamento ruim vier à cabeça e o bolo tenebroso começar a ser reformulado.

Ao contrário de uma receita usual, acredito que o processo de assar o bolo das ideias não é no final, mas que perdura por todo o caminho, porque o chamo de acolhimento. Mesmo nos piores momentos, e principalmente na hora do desespero, sempre buscamos ajuda. Às vezes, isso se não transparece da melhor forma, pois como somos humanos, nossas atitudes são repletas de imperfeições. E nessa cozinha tão desordenada que é a nossa vida, é difícil encontrar as várias facetas de carinho. Sim, ele está em falta no mercado, mas ainda é possível encontrar. Que tenhamos sorte de encontrar calor em nosso caminho para acalentar novas formas (e fôrmas) de saborear a vida, já que tudo é muito grande e diverso para se experimentar sempre a mesma fórmula. Que venham novas receitas!

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