Privilégio

Muita gente não sabe, mas quando temos alta do hospital, geralmente não conseguimos andar, falar, e em alguns casos nem engolir. Utilizamos fraldas, e estamos com um trauma psicológico no grau master

Quem conta as moedas no fim do mês, tem ideia de como a questão econômica interfere no acesso à oportunidade. Ao sobreviver a uma lesão cerebral, experimentamos um desfalque tanto nos neurônios quanto no bolso. Aqui vai uma amostra dessa história.

Adoecer custa caro. Caso você frequente a farmácia de vez em quando, tem ideia do que estou falando. Os preços dos medicamentos sempre tendem a subir, não nos deixando muita escolha, além do modo de pagamento no crédito ou no débito. Para quem lida com alguma doença crônica ou tem a vida atravessada por um acidente grave (como um AVC, por exemplo) o baque nas contas é tão forte quanto o abalo emocional. Simplesmente não tem limite.

Existem vários tipos e causas de AVCs e eles atingem pessoas de qualquer tipo de idade, gênero, localidade e classe social. Ele não faz distinção e atinge pessoas diferentes, mas em relação ao poder econômico, ele evidencia ainda mais a desigualdade, já que sobreviver a um AVC ou a qualquer outra lesão cerebral é muito oneroso. E os custos vão muito além das altas contas da farmácia, que já pesam muito no nosso orçamento.

Para começo de conversa, é preciso pagar pelo hospital, cirurgias e exames. Quem tem plano de saúde consegue ter atendimento e pagar menos por isso, porém, quem não o tem, precisa contar com o Sistema Único de Saúde (SUS), que apesar de ser muito bom, não dá conta da imensa demanda de pacientes necessitados.  Não seria exagero dizer que quem sofre uma lesão cerebral e não tem recursos financeiros, precisa ter uma boa dose de sorte para sobreviver.

Neste caso, se for socorrido a tempo, o futuro sobrevivente é encaminhado à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) mais próxima, que geralmente não possui aparelhos nem profissionais especialistas em neurologia. Então, se neste local sua lesão for rapidamente diagnosticada, o paciente é reencaminhado para um centro médico especializado. Ainda não tenho como estipular números, mas dá para imaginar que muitas pessoas não conseguem ser atendidas devido a alguma demora nessa logística. Mas estamos só no início da história…

Muita gente não sabe, mas quando temos alta do hospital, geralmente não conseguimos andar, falar, e em alguns casos nem engolir. Utilizamos fraldas, e estamos com um trauma psicológico no grau master. Nos primeiros dias precisamos de alguém para nos ajudar nos cuidados básicos (tomar banho, escovar os dentes, pentear o cabelo, nos trocar, nos secar, nos ajudar na locomoção e, de vez em quando, até mesmo nos limpar a baba).  Alguns contam com a ajuda da família nesse processo, que também fica fisicamente e emocionalmente impactada (não tem como ser indiferente à situação), enquanto outros (devido ao grau da lesão ou situação familiar) necessitam contratar uma enfermeira ou outro profissional da área de cuidados. E esse profissional, é claro, precisa ser devidamente pago.

Além disso, é nesse momento em que devemos começar os inúmeros tratamentos de reabilitação (quanto antes, melhor). Isso porque são várias as sequelas, e cada uma delas precisa de um tratamento específico. Imagina como fica a nossa agenda? Recheada de compromissos desafiadores. Aí a divisão da situação econômica se expande novamente, mas de modo um pouco mais delicado. Muitos planos de saúde não liberam os tratamentos especializados prontamente: cada solicitação demora dias para ser analisada, e algumas delas, só saem após processos judiciais, no tempo determinado pela justiça brasileira. Quem não tem plano de saúde, volta para a fila do SUS e torce para ser chamado.

Só que se recuperar de um AVC é uma verdadeira corrida contra o tempo, principalmente durante o primeiro ano, que é o período em que mais temos chances de recuperar os nossos movimentos e as nossas funções (é o que os especialistas chamam de “período áureo”). Resumindo, quem demora ou não tem a oportunidade de se tratar com um especialista fica em séria desvantagem. Por este motivo, não é incomum pacientes rasparem a poupança ou recorrerem a empréstimos para investir na própria reabilitação. E aqueles que não têm essas opções, o que fazem? Desistem? Meu caro, nenhum AVCista desiste de sua recuperação tão fácil, não nos damos essa opção.

 Na espera ou na falta de um serviço, a saída é procurar os atendimentos gratuitos nas universidades (que realmente funcionam, após você passar por mais uma fila de espera) ou correr para a internet, onde estão disponíveis canais de outros sobreviventes e especialistas em reabilitação pós-AVC ensinando exercícios para quem precisa. É o ideal? Não. O ideal seria que cada pessoa tivesse acesso a um tratamento especializado pelo tempo que precisasse. Mas esses vídeos ajudam? E como! Se não fossem por eles, muitas das pessoas que eu conheço não estariam andando e se comunicando (Eu mesma, aprendi a me vestir com um desses vídeos e serei eternamente grata à pessoa que o postou.).

Também é importante mencionar a questão emocional, já que o financeiro impacta diretamente nela. Ao sobreviver a um AVC caímos na rede do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), seja para adquirir o auxílio-doença, ou para nos aposentarmos por invalidez. Ambos não dispõem de uma quantia suficiente para quitar os nossos gastos mensais e somos obrigados a reduzir drasticamente as nossas despesas: carros e casas são vendidos e filhos são obrigados a desistir do ensino superior. Sonhos são liquidados em prol da sobrevivência e, muitas vezes, o paciente se sente culpado por sua situação de saúde interferir tão drasticamente no dia a dia de sua família. A gente só conhece a nossa verdadeira condição socioeconômica ao lidar com uma tragédia. Com certeza o AVC é uma delas.

Diante dessa situação, não há como deixar de mencionar a necessidade de um tratamento psicológico, infelizmente um serviço indisponível a todos. A sensação que senti ao sobreviver aos meus acidentes vasculares cerebrais foi de que, de alguma maneira, eu havia morrido. Na verdade, eu até tinha uma certeza de que não duraria seis meses, especificamente até a data estipulada para a minha próxima angiografia. Sei lá como explicar isso, mas era o que eu sentia e agia como se tivesse pouco tempo.

Não gostava dessa minha nova vida em que me sentia isolada de tudo e de todos, em que não conseguia abrir uma garrafa de água, e que sempre era passada para trás (econômica e emocionalmente). Não fui a única a passar por esses tipos de desfalques. Durante os primeiros meses de recuperação, muitos sobreviventes se tornam incapazes de controlar suas finanças devido a uma sequela cognitiva chamada discalculia, e se tornam vítimas fáceis de apropriações indébitas. Também é comum vivermos relacionamentos abusivos nesse momento tão frágil, porque a gente vem para essa nova vida totalmente vulnerável e com a autoestima lá embaixo.

A falta de assistência é uma das principais causas da disparidade na condição de sobreviventes. O problema não é vontade, mas oportunidade. Porém, apesar de tantos pesares, aqui no “mundo do AVC” diariamente nos ajudamos de uma forma muito solidária. Não estou exagerando não. Acontece isso mesmo. A impressão que dá é de que o AVC nos lembra o quanto somos humanos e do verdadeiro valor das nossas relações. Entre nós, somos muito diferentes em condições e pensamentos, mas procuramos nos ajudar com respeito e cuidado. Sabemos o que é perder, conhecemos a dor que isso traz, mas temos a sorte de termos uns aos outros e lutarmos por cada dia de vida. Apesar de tanta dor, no quesito união é onde somos verdadeiramente privilegiados.

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