O tango

Não existem movimentos perfeitos depois de um AVC. Tudo é demasiadamente expressivo, dramático e passional. Especialistas dizem que a gente marcha, vou além: a gente dança!

Nunca fui boa em dançar. Sabe aquela pessoa que abre a pista de dança em uma festa? Ser assim definitivamente não fazia o meu estilo. Movimentar-se para lá e para cá perante os olhos dos demais me causava certo incômodo, ao ponto de achar que tal exposição me causasse desequilibro e até mesmo me fizesse cair. Coisas da minha primeira vida: sempre dançando nas beiradas e não no centro. Assim, sem chamar muito a atenção.

Até que, um dia, fui literalmente obrigada a entrar numa excêntrica aula de tango. Uma dança complexa e melodramática demais para uma simples iniciante, já que ela exige muito até dos bailarinos mais experientes. Mas era assim mesmo: planejar certinho cada passo e executá-lo com estratégia e determinação. Logo no início, meu corpo desengonçado não sabia como entrar em um ritmo: sempre pendendo para atrás, especificamente no lado esquerdo. Porém, a única solução era continuar a dança. Não havia outro jeito. Então, era um, dois, três; passo para a frente, passo para o lado e passo para trás. Um, dois, três…

Obviamente, dançar tango, assim, de repente chamava muito a atenção: no hospital, na rua e até mesmo em casa. Meu conforto da introspecção tinha ido para os ares. Agora, para todo movimento meu, haviam olhos para maximizá-los. Como ainda não tinha domínio dos passos, a tendência era meu corpo cambalear devido minha perna pesada, que insistia em se arrastar pelo chão. O pé esquerdo com suas garras e a mão contorcida (como quem segura uma rosa invisível com espinhos) tornava a situação ainda mais vexatória perante aqueles que ignoravam o esforço de minha aprendizagem. Sendo assim, tive vergonha, não queria mais me aventurar nessa dança, principalmente na frente de estranhos. Me sentia pequenina e vulnerável pelos olhos da plateia observadora. O mundo, para mim, subitamente se tornou ameaçador. E mesmo com o auxílio de uma bengala ou de um andador, nada mais era seguro e reconfortante. Que dancinha difícil!

Até hoje acredito que o segredo de dançar bem é estar de cabeça erguida. Talvez o dançarino nem tenha certeza se aquele movimento é correto, mas ele precisa acreditar que é. Faz parte do show. Por incrível que pareça, no meu caso, descobri que com a cabeça erguida o corpo se ajeita melhor, ao ponto de quase ser o que era antes. De cabeça erguida tendia a ser mais ereta e sair do padrão AVC, que é quando a gente fica com um dos membros superiores encurvado, quase que conduzindo um parceiro inexistente, e com as pernas sempre abertas fincadas no chão.

No mundo do AVC, a gente chama o tango de “marcha”, porque esse é o nome que os fisioterapeutas deram. Para mim é mais um tango, porque a gente não dança sozinho, dançamos com a nossa sequela. Por isso cada passo é preciso e dolorido. Dói no corpo e na alma dançar contorcido como um violino bem no centro do palco da vida. Quem marcha, marcha sozinho, mas a gente se movimenta com as consequências de um cérebro machucado.

Um par que ao invés de nos confortar, nos aprisiona. São passos sincronizados de um eterno amor por nós e constante repulsa pela nossa dupla que insiste em nos guiar. A gente quer desesperadamente afastá-la, mas ela é tão onipotente, que se entrelaçou para sempre ao nosso corpo. Tudo por causa da nossa cabeça.

O desafio do nosso tango é virar o jogo no domínio do par: conduzi-lo ao invés de ser conduzido. Lembrá-lo de que quem manda na dança não é ele, por mais que, bruscamente, ele levante a perna para o lado, provocando o nosso segundo grande medo: o de cair. O primeiro sempre será o de ter um outro AVC, nenhum outro ganhará desse. Desde a primeira aula todos nós sabíamos que não seria fácil.

Entretanto, neste tipo de dança, não existe técnica que sobreponha o sentimento. E isso nós, AVCistas, temos desde o primeiro suspiro da nossa segunda vida. Com um cérebro machucado, todas as emoções transbordam: receio, lembrança, frustração e coragem. Cada um de nossos passos é acompanhando por todas essas emoções entrelaçadas. Nenhum sobrevivente de AVC começa a andar sem respirar fundo e dizer para si mesmo que está pronto para sair da cama, do chão, das coxias.

Caminhar depois do AVC é um ritmo contínuo e, ao mesmo tempo, pausado (porque todo AVCista que se preza tem a sua elegante paradinha). É dançar com a maior dor que se tem durante uma interminável festa. De longe, ninguém sabe da história percorrida por cada movimento, do mesmo jeito que apenas os bailarinos sabem quanto tempo foi necessário para aprender a se entregar a um certo acorde. Por ignorância todos os leigos desdenham. Que pena!

Muitas pessoas não gostam de tango, e para ser sincera, tem horas que até quem o dança se cansa dele. Porém, na nossa vida, esta é a única melodia que está tocando. O único jeito de sobreviver é aprender a conviver com ela. Mesmo sendo tão difícil, chega um determinado tempo em que a gente aceita o desafio como tem que ser, de cabeça erguida!

Não existe um tempo de aula definido para adquirir tal habilidade. Cada um tem um jeito de se adequar a sincronia de opostos de sofrer sorrindo, perder ganhando e morrer vivendo… Tudo muito visceral, humano e lindo.

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