O mensageiro

O corpo é inteligente, a gente é que é lerdo

No mundo dos AVCs, o hemorrágico e o isquêmico são os mais conhecidos. Porém, também tem o AVC transitório, que apresenta os mesmos sintomas dos anteriores, só que depois de um tempo eles desaparecem sem deixar sequelas. Não é mágica: é aviso. O AVC transitório é o mensageiro.

Sexta-feira, 10 de maio de 2019. Saí do trabalho e fui direto comemorar o aniversário de um amigo no centro da cidade de Curitiba. Antes de entrar no bar em que estava rolando a festa, resolvi tomar um chope com um outro amigo no bar da frente, e foi ali que tudo aconteceu: senti um estalo na nuca e tive a sensação de que o meu sangue estava se espalhando pela minha cabeça, como se fossem galhos de uma árvore. Já estava com uma dor de cabeça persistente durante todo o dia, mas nada tão forte ao ponto de ser uma crise de enxaqueca. Porém, depois dessa sensação de estalo, a dor se intensificou de tal modo que era difícil manter os olhos abertos. Esqueci da festa e do aniversariante, chamei um Uber e fui direto para casa.

Abri a porta da sala exausta, liguei a luz da sala e me abaixei para dar comida aos gatos (na época eram três). Esta simples ação de me abaixar fez com que eu sentisse uma forte “pancada” na cabeça. Uma dor tão forte que tive a sensação de estar cega. Desliguei as luzes. Deitei-me na cama, mas não consegui dormir. Definitivamente não estava bem e, já com a respiração ofegante, decidi pedir ajuda em um grupo de WhatsApp. Uma amiga atendeu meu pedido e logo me avisou que o seu carro estava estacionado em frente ao meu prédio, e que me levaria diretamente ao pronto-socorro. E naquele instante, meu alívio de ela ter chegado se misturou ao desespero em notar que eu não conseguia mais me mexer: não conseguia sair da cama, nem me vestir, nem conseguia abrir a bolsa para pegar meus documentos. Com muita dor e demora, fiz o que pude e consegui entrar no carro. Minha amiga disse que eu estava pálida e que minha mão esquerda estava gelada. Eu já não sentia mais a minha mão.

Fomos no primeiro hospital. Lembro que tive dificuldade para sair do carro e que, mesmo assim, precisei subir uma rampa arrastando a perna esquerda, que estava mole, sem função. Ninguém do hospital nos ajudou, apenas mediram a minha pressão na triagem (que estava um pouco alta) e me mandaram para outro hospital porque não aceitavam o meu plano de saúde no turno da noite. E assim, nessa situação desesperadora, fomos para o segundo hospital particular, onde esperamos horas para sermos atendidas. Horas.

Nesse período chorei, quis me deitar no chão e apenas não fiz isso porque a minha amiga não deixou. Na triagem, falei que estava com fotofobia, uma imensa dor de cabeça oriunda de um estalo da nuca e que não conseguia mover metade do meu corpo. “Tá vendo, eu não consigo mover a perna, nem o braço”. Também notei que estava com o rosto torto pois me pediam o tempo todo para sorrir, e eu tinha dificuldade para fazer isso (tipo meio Roberto Carlos). Perguntaram se eu sentia ânsia de vômito. Sim, eu sentia. Perguntaram se eu tinha usado droga. Eu repeti, UM CHOPE. “Não, não uso drogas”. Me colocaram em uma maca plastificada. Fiquei muito tempo lá até ser levada para a tomografia. Não podia abrir o olho, a dor era muito forte. Supliquei para me injetarem um remédio para dor. Mas nada que me dessem, adiantava. O topo da minha cabeça doía inteiramente, sentia uma forte pressão para baixo. A crise estava tão forte que comecei a gritar. As enfermeiras falavam com a médica responsável pelo plantão: uma cardiologista.  Finalmente adormeci. Acordei e fui liberada para casa, a tomografia não tinha acusado nada e a receita recomendava um remédio para meningite. Saí do hospital aliviada pela dor ter passado, e meio constrangida pela minha cena no pronto-socorro. Achava que tinha causado a impressão de estar bêbada, quando não estava. Obviamente não estava.

Porém, não era meningite. Era um AVC transitório (ou sentinela, para os mais populares) que é uma espécie de amostra-grátis de um AVC que está prestes a acontecer. É o corpo avisando que em breve ele entrará em um colapso fatal e, para que a mensagem seja claramente decifrada, ele emite os mesmos sinais do que realmente está para acontecer. É por isso que os sintomas do AVC transitório são os mesmos do AVC isquêmico ou hemorrágico. O corpo é inteligente, a gente é que é lerdo. A ideia é que seja todo esse horror para assustar mesmo, e assim o paciente consiga se preparar ou até mesmo evitar o que está por vir. O problema não está na mensagem, e muito menos no mensageiro (temos que parar com essa história de culpar o mensageiro), o problema está quando o recado não é ouvido.

Quem chega com esses sintomas no hospital não deve ser liberado para casa, mesmo que não apresente nada significativo nos exames. O paciente deve ser internado para observação e, no dia seguinte, ser submetido a um exame por contraste. Tal procedimento teria identificado meu aneurisma prestes a romper e teria evitado que eu passasse por um AVC hemorrágico, e logo depois um AVC isquêmico (que se deu em consequência do AVCH). Teria evitado minhas sequelas, meus longos meses afastada do meu trabalho e da minha vida social e incontáveis sofrimentos.

Todavia, apesar de o aviso do meu mensageiro não ter sido escutado quando procurei ajuda, tive a sorte de sobreviver aos dois AVCs que vieram depois dele. O mesmo não acontece com muitas pessoas que passam pela experiência de um AVC transitório: são liberadas do hospital e morrem em casa, no trabalho ou na rua. Para ser sincera, desconheço o motivo de o AVC transitório ser tão ignorado nos hospitais. Pode ser que a maioria das pessoas que cheguem ao pronto-socorro estejam embriagadas e com sintomas que se confundam com os de problemas circulatórios, mas a meu ver, quando problemas circulatórios ou neurológicos ocorrem, são bem perceptíveis. É a pior dor de cabeça do mundo! É você perder a mobilidade! É a sua feição do rosto mudar! De todo modo, é inegável que o aviso do AVC é tão importante que deve ser publicado no jornal, para que todo mundo saiba. Ele informa que um AVC está prestes a ocorrer! Não ignore este mensageiro!

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