O curioso caso de Camila Fabro

A ciência diz que cérebros machucados são semelhantes a cérebros envelhecidos em seu funcionamento. Deve ser por isso que me sinto tão diferente no mundo depois do meu AVC. Sou uma jovem de oitenta anos!

Agosto de 1984. Foi nas primeiras horas de uma fria manhã de inverno que nasci, no interior do estado do Paraná. Apesar de ter nascido algumas semanas antes da data prevista, fui considerada saudável e tive uma vida considerada normal por muitos anos, em todo meu desenvolvimento, conquistas e eventuais perdas. Tudo seguia o fluxo considerado normal: escola, faculdade, namoros, foras, primeiro emprego, segundo emprego, pós-graduação. Durante essas etapas fui crescendo e me tornando uma jovem adulta. Até um acontecimento inusitado.

Maio de 2019. Devido a uma trágica sequência de três AVCs, quase que automaticamente, envelheci uns cinquenta anos. Assim, num passe de mágica! Se degeneração neurológica mágica fosse. Tudo começou pelo meu corpo, que não era mais o mesmo. Manter-me em pé e andar, de repente, se tornaram atividades difíceis. Não havia força nem equilíbrio suficientes, e para me locomover, precisaria de um acessório (primeiro um andador, depois uma bengala) ou a ajuda de terceiros. Mesmo tendo a audácia de sair de casa sozinha, a cada trajeto me deparava com a triste realidade de ter subitamente envelhecido: as pessoas me olhavam ora com ternura, ora com piedade, mas sempre de longe.

Aproximar-se demais significava correr o risco de envolver-se em conversas tediosas e pedidos de favores. Deus as livre disso!

Em uma de minhas “aventuras”, tive o desejo de frequentar um antigo restaurante vegetariano de minha preferência e, ao chegar ao local, me lembrei que logo em sua entrada havia uma longa escada. O engraçado é que nem tinha reparado como ela era inacessível na minha antiga vida, e então percebi que não era mais bem-vinda ali. Meu tempo de acesso àquele local havia se passado, e como tal, só havia espaço para antigas memórias vividas lá. Acontecimentos novos não existiriam, a falta de um corrimão ou rampa não permitiriam. Era um aviso cruel de que meu tempo tinha passado, mesmo eu tendo trinta e poucos anos e uma vida inteira pela frente.

Além de meu corpo estar debilitado, a minha mente também não estava lá essas coisas. Com os neurônios bagunçados, a memória era curta, a fadiga extensa e qualquer barulho adicional se tornava insuportável. Mexer em aplicativos e outros produtos tecnológicos se tornou muito complicado. Incrível como poucos meses antes, eles eram tão fáceis de manusear e simplesmente tudo perdeu o sentido. Sendo assim, era preciso pedir ajuda dos “mais novos”, que eram todos da minha idade. Tive como resposta impaciência e tons de indiferença e desprezo. “Um dia eles saberão o que estou passando” – pensava. Isso se tiverem a dádiva de envelhecerem um dia, na ordem natural das coisas ou não. Se tiverem a sorte de conviver com as tão temidas rugas, passarão por esses percalços. Mas, certamente, não se lembrarão mais de mim. Eu envelheci cedo demais por causa do AVC, então não pertencia mais aos mesmos costumes de antes, e isso fez com que, aos poucos, fui sendo afastada dos eventos. Nunca mais foi a mesma coisa.

Outro aspecto curioso dessa minha transição cronológica foi a minha relação com as crianças. Dizem que idosos e crianças têm uma conexão incomum, e isso é totalmente verdade, pois estamos passando pelas mesmas experiências. Só que enquanto elas estão aprendendo a usar o banheiro e a amarrar os sapatos, nós estamos reaprendendo a fazer essas mesmas coisas. Tudo de um modo menos encantador, com certeza. Não estamos começando, mas regredindo. Não há o mesmo brilho nos olhos. Porém, a conexão é mesmo genuína. Faz parte da conjuntura da nossa espécie nos identificarmos com quem vivencia as mesmas situações.

O embaçamento da visão também dificultou as coisas. Sinais sutis de identificação e expressões faciais se tornaram enigmas sem sentido no início da reabilitação. Então, me dei mal: acreditei em todas as palavras ditas a mim como verdades absolutas. Esqueci que jovens mentem constantemente para si mesmos e para os outros, a fim de se tornarem os mocinhos da história, uma espécie de compulsão para aliviar a culpa e covardia perante suas ações. Tudo fruto da imaturidade. Meu Deus, até que ponto eu era assim também?

Ao envelhecer cedo demais descobri como as pessoas têm medo da vida. E nesse medo, são sucumbidas por mil desculpas para esconder suas falhas. Ao invés de aprender com os seus erros, os justificam em ações alheias. Será que ninguém sabe que passará os seus últimos dias sozinho, mesmo estando em uma multidão? E daí, quem será o responsável por tudo isso a não ser si mesmo? Acredito que essa será uma das constatações mais cruéis da minha geração. Mas ninguém quer saber disso agora, ninguém tem tempo para refletir sobre experiências.

Todavia, tornar-me octogenária aos trinta me fez aprender a ler as pessoas de um modo diferente. Por exemplo, no fundo todo mundo só faz o que se tem vontade. Não se trata do que dizem ou gostariam de fazer, mas do que se tem vontade. Responsabilidade e consideração ficam para depois, para outra pauta. A partir disso há como selecionar as promessas que serão cumpridas ou não. Simples assim.
Outra coisa que aprendi é que, conscientemente ou não, a gente sempre sabe da consequência de tal ação, seja ela positiva ou negativa. As situações transparecem o seu futuro mais por continuidade de fluxos do que por constatações (o implacável modus operandi: sempre voltamos a fazer o que já fizemos). Alguns dizem que esse ato de compreender tais sutilizas é intuição, prefiro chamar de experiência. A maioria de nós já vive um bocado de tempo nesse mundo, já passou da hora de darmos o devido valor às nossas percepções.

Talvez a melhor lição que aprendi em meu envelhecimento precoce foi a de que o ponto de partida dos nossos recomeços está no que não temos, no que sentimos falta, e não exatamente no que vamos conquistando ou tendo. Todo esse negócio de escalar uma íngreme montanha até adquirir o que se deseja no topo é balela! Essas afirmações são inventadas por corporações e centros comerciais a fim de trabalharmos e gastarmos mais.

O verdadeiro lance de obter o que se deseja é mais direto e horizontal. A gente quer é o que a gente não tem, e isso cada um guarda dentro de si, é algo impossível de ser acoplado em uma estratégia de marketing. Descobri essa façanha nos grupos de apoio de sobreviventes de AVC. Lá, entramos carentes de tudo: de nosso trabalho, de nossas relações, de nossos movimentos. É um vazio desesperador. Mas é exatamente essa falta que nos une, e de um modo bem verdadeiro nos reconstruímos, com projetos, ideias e algumas vitórias. Se conquistamos de volta tudo que nos falta? Provavelmente não. Mas, sabemos o que buscamos e isso faz total diferença. Ressignificação é obter algo perdido de outro jeito. É assim que os livros de História descrevem como tudo foi reconstruído pelo ser humano: tudo começou do ponto zero.

Se um AVC é capaz de transformar um adulto em um bebê de oitenta anos, ele é mais uma prova de que Einstein tinha razão sobre a relatividade do tempo. Sabe essa ideia imposta de que pessoas têm um prazo de validade para fazer as coisas? É lorota de gente antiquada e fatalista! Pessoas são humanos, não produtos! Caso você ainda pense de maneira tão conservadora, aprenda com os Benjamins Button da vida que sobreviveram ao AVC: não corremos contra o tempo, mas seguimos com ele. Sempre existirá como recomeçar, desde que estejamos respirando. Todo dia é dia para se acordar de um coma.

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