O armário

Tenho a sensação de que a minha vida já estava bagunçada antes do AVC, e depois dele parece que tudo piorou: são medos, lembranças, traumas… Tudo embolado no armário da minha cabeça

Dias desses me propus a organizar meu guarda-roupas. Algo que antes do meu AVC era periódico e que agora tornou-se uma verdadeira odisseia por diversos fatores: um deles é a perda da mobilidade da minha mão esquerda que durante anos me impossibilitou dobrar roupas. Eu sempre tentei fazer esta ação, é verdade, porém as peças ficavam mais amontoadas do que dobradas. Então, imagina o caos que era abrir a porta do meu armário. Ele estava tão bagunçado quanto a minha cabeça.

Acho que a pior coisa de ter uma deficiência adquirida é que na nossa mente, o corpo não se modificou. Então, a gente imagina perfeitamente uma ação, mas na hora de executá-la simplesmente não acontece, nada sai como o esperado. E no início a gente não sabe bem o porquê deu errado. A sensação é esquisita, uma espécie de frustração misturada com desespero.

A mão ruim (que é como chamamos a mão lesionada) é uma sequela bem comum em sobreviventes de AVC. Na verdade, acredito que seja uma sequela presente em todos nós. Além da própria lesão cerebral típica em AVC atingir a parte do cérebro responsável pelo membro superior, muito de nós deixa a reabilitação da mão para depois, priorizando a marcha (que é como voltamos a andar após uma lesão encefálica).

O grande problema da mão ruim é a espasticidade, que é uma contração involuntária da flexão dos dedos, deixando-os no formato de garras. Além de ser esteticamente constrangedor, esse padrão flexionado nos impossibilita de manusear objetos por meio de movimentos finos. E o pior: dói. Com todas essas intercorrências, a tendência é esquecer-se da mão lesionada e utilizar somente a outra nas tarefas do dia a dia. O nome desse terrível ato é heminegligência, um hábito que tento mudar diariamente.

Como moro sozinha, praticamente cuidava na minha casa com apenas uma das mãos, e assim, a bagunça foi se acumulando e ficando caótica. Com a melhora dos meus movimentos nos últimos anos resolvi me aventurar e retirar todas as coisas do meu guarda-roupa para organizá-lo completamente. Resultado: foi como ir para Nárnia!

Sofri o AVC poucos anos depois do meu divórcio. Já estava em outra rotina, mas ainda tinha muitas roupas do tempo de casada. Quando a gente se separa, é normal focarmos em realizar antigos desejos e um deles era dar um trato no meu visual. Nisso, uma amiga que entende de moda se propôs me ajudar a encontrar meu estilo: cheios de laços, gravatas, meias calças, saltos altos e roupas justíssimas. Todas elas são impossíveis de serem usadas por um AVCista. Muitas dessas peças eu doei logo após o AVC, algumas guardei e outras foram ficando lá, esquecidas no meu armário, junto com o que elas representavam da minha personalidade. Pequenas vaidades que deixei de lado ao focar-se totalmente na minha reabilitação. É incrível como a gente se esquece da gente depois de uma lesão neurológica. Ficam apenas vestígios de quem um dia fomos, como roupas amassadas num canto do armário.

Nesta jornada de remexer o fundo do guarda-roupa, também encontrei lembranças dolorosas como: exames neurológicos, moletons desgastados e as terríveis fraldas geriátricas. Como tive uma forte lesão cognitiva, não tenho ideia do porquê guardei essas coisas lá, mas com toda certeza não foram propositalmente. Acredito que como todo ser humano, tentei ignorar esses revezes da vida. Embora ignorá-los nunca significou esquecê-los. Ao separar peças e acessórios para o descarte, percebi que muitos deles já deveriam ter ido embora antes do meu acidente. Antes dele eu já deveria ter tido tempo para reorganizar as peças que faltavam e sobravam na minha vida. Mas, insistia em deixar isso para depois. Acreditava que teria tempo.

Independente de ter ou não uma lesão cerebral, acho que todo mundo tem uma estante bagunçada: com misturas de passado e presente capazes de enlouquecer qualquer Marie Kondo. O fato é que todos nós carregamos coisas demais que já se foram, sem nenhuma razão para guardá-las. E elas ficam lá ocupando espaço e impedindo que novas coisas sejam inseridas. Todo esse apego vai construindo um armário lotado, mas inútil.

Quem tem uma lesão cerebral entende muito de apego, porque perdemos tanto em tão pouco tempo que tudo que nos resta é extremamente valorizado. Dificilmente renunciamos a ideias e praticidades já existentes. Qualquer sinal de que estamos saindo da nossa zona de conforto é instantaneamente repudiado. Temos medo de perder o que ainda temos, e nisso, não percebemos que a realidade mudou e que para seguir em frente é preciso largar antigos hábitos. Sem essa atualização ficamos estagnados.

É bem comum sentirmos pena de nós mesmos depois de um AVC. Também pudera, assistir a debilitação do nosso corpo e da nossa autonomia é muito cruel, difícil mesmo de aceitar. É assim com todo mundo que enfrenta uma situação difícil: a perda de emprego, o afastamento de um amor ou o falecimento de um ente querido. A gente se sente meio incompleto mesmo e acredito que isso seja normal. Sentimos literalmente um vazio em nosso corpo.

Demora para cair a ficha de que ainda estamos vivos e de que sobrevivemos a uma tragédia. São muitos sentimentos embolados, por isso é tão difícil se entender no processo de ressignificação. É um período lento de luto em que somos obrigados a recolher os caquinhos do nosso ser, enquanto somos julgados por quem não tem a mínima ideia do que estamos passando. Quem julga um sobrevivente de AVC não tem maturidade suficiente para entender a tragédia de um cérebro machucado. Todo esse processo de encontrar, identificar e catar retalhos da vida antes e depois de um AVC é muito dolorido, assim como a nossa reabilitação motora, porém é essencial. Faz parte da psique humana morrer para transformar-se. Faz parte do desafio do cérebro e da vida liberta-se do passado para ir em busca de um futuro.

Ouso confessar que durante esse processo de fluxo de consciência, inconscientemente o estendi a alguns irmãos de luta durante esta semana. Como estou montando o documentário a respeito de sobreviventes de AVC, pedi a alguns depoentes fotos de sua primeira vida (a de antes do AVC) e, ao me atenderem, eles também revistaram a Nárnia de suas primeiras vidas. Apesar de sermos pessoas diferentes e com vidas diferentes, tivemos a mesma percepção: continuamos a fazer exatamente o que fazíamos, mas de outro jeito. O AVC nos tirou muita coisa, mas não nossa personalidade e nosso jeito de encarar a vida. O essencial ainda está lá porque somos os donos da nossa história, independentemente de roupas e acessórios. Só o Cristiano dava aula daquele jeito e apenas a Daniela organizava uma loja com aquela dedicação. E eles sobreviveram. Não pertencemos às nossas roupas, as nossas funções ou as nossas crenças, é ao contrário: somos nós que as temos. Se separarmos tudo e reorganizarmos em seu devido lugar fica menos difícil aceitar isso.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Há saída para a violência?

Há que se ter coragem para assumir, em espaços conservadores como o Poder Judiciário, posturas contramajoritárias como as que propõe a Justiça Restaurativa

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima