Dois leões

Muita gente fala que tem de matar um leão por dia. Depois do AVC a gente também lida com esse leão, só que agora ele não está sozinho. São dois, e ambos estão famintos

Todo mundo mata um leão por dia para sobreviver: acordar cedo, enfrentar o trânsito, ir ao trabalho, ir ao supermercado, lidar com a birra das crianças, cozinhar, arrumar a casa, tomar banho e dormir. A nossa rotina é como domar um leão dentro de uma jaula. Difícil, mas a cela está trancada e não tem escapatória. Quando sobrevivemos a um AVC, imediatamente voltamos para esta jaula do leão. Só que, agora, ele tem um novo companheiro. São dois leões, diferentes em suas aparências, mas com uma vontade em comum: saciar sua fome.

O segundo leão é rápido e voraz. Ele chega de repente e toma todo o espaço para si. Ao contrário do primeiro, ele não age conforme o tempo e o espaço, por isso ele não rodeia a sua presa, mas a encara bem de pertinho, rosnando a cada mínimo movimento. Sentimos seu hálito todos os dias porque é ele que nos acorda. A primeira coisa que sentimos são os efeitos de sua mordida, e por isso temos tanto medo dele. Nomeei esse segundo leão de “Acidente Vascular Cerebral”.

Durante alguns anos, este novo leão se tornou o centro de minha vida. Também pudera, a ameaça de ser devorada por ele aparecia em cada passo em falso, a cada palavra esquecida e a cada engasgo com a saliva. Porém, o primeiro felino ainda estava na jaula. Ele continuava ali, vivo, me rodeando com as contas não pagas, as conversas não terminadas e os afazeres da casa acumulados entre o pó e as bulas de remédios. Tudo que era importante na minha vida ficou em segundo plano, porque a minha prioridade era lidar com o segundo leão. Tinha a ilusão de que se eu o matasse, voltaria a ter tempo de lidar com o primeiro.

Só que na verdade, ninguém é capaz de matar leões. E como demorei para perceber isso. Esta ideia de domar um animal que se levanta furioso com os primeiros raios solares é uma mentira, apenas um jogo de holofotes. Todos os leões estão vivos, e não necessitam ser mortos, mas conduzidos. Matar um leão por dia é apressar a vida e vê-la passar depressa, sem nunca a usufruir. Quem perde é o domador, não o animal. O grande gato sempre estará ali.

Talvez a maior dor de um AVCista é entender que, a partir do momento em que sobrevive ao acidente, precisará lidar com dois leões para o resto de sua segunda vida. Por mais que nos recuperemos, alguma sequela sempre fica. E se a gente a priorizar, vamos continuar deixando de pagar as contas em dia, de limpar a casa e de nos relacionar com as pessoas que amamos. Por medo de sermos mordidos pelo novo leão, seremos devorados pelo outro continuamente. Esse excesso de predadores se refletirá na escassez de propósitos e pessoas na nossa vivência, ou seja, depressão e solidão.

O problema principal é a fome dos bichos. Os dois felinos se encontram furiosos porque precisam que a suas necessidades sejam supridas. Tudo é questão de necessidade: andar, comer, amar e ter segurança. Há um excesso de necessidades, e perante elas a gente se sobrecarrega e se entristece porque não dá conta.

Por focar em andar sem apoio, deixei de cuidar da casa. Por me concentrar muito em voltar a escrever, parei de ouvir as preocupações de minha amiga mais próxima. Assim, me tornei egoísta. A necessidade de me reabilitar exigiu tanto foco, que minhas relações e obrigações foram deixando de serem atendidas. Foi uma questão de prioridade: não tinha como pensar no outro enquanto não tinha condições de cuidar de mim mesma. Infelizmente essa foi a minha única alternativa naquele tempo. Só que ao tentar domar o segundo leão, acabei sendo devorada pelo primeiro.

A primeira estratégia de todo sobrevivente de AVC é recuperar todo o seu corpo antes de preocupar com o mundo a sua volta. Ninguém me avisou que essa tática não iria dar certo, de que eu nunca voltaria aos “cem por cento”. Em nenhum momento um médico ou profissional da área da saúde me disse que, a partir de então, eu seria uma pessoa com deficiência. Descobri isso tarde demais, quando a minha vida pessoal já estava aos pedaços.

Demorei muito para perceber que o AVC sempre estará presente na minha história e as consequências dele sempre estarão em minha vida. E que eu teria que aprender a domar as necessidades de dois leões ao mesmo tempo, de modo que nenhum deles passasse mais fome. Quando percebi que com o um cérebro machucado, eu me canso muito mais, passei a inserir pequenas pausas durante meus afazeres diários. Isso extinguiu a fadiga? Não. Mas melhorou meu rendimento. Com o segundo leão mais calmo, tive novamente condições de dar atenção e lidar com o primeiro, que há tempos estava enciumado com a insistente presença do seu adversário.

Tenho quase quatro anos de AVC e ainda muita coisa para aprender sobre ele. Assim espero. Mas, já tenho tempo o suficiente para saber que algumas habilidades voltam, outras não. Alguns movimentos se recuperam, outros não. Algumas sequelas são temporárias, enquanto outras são permanentes. E que mesmo tendo uma reabilitação excelente, alguma coisa sempre fica. Não existe AVC leve. Todos continuamos sofrendo com a existência dele em algum grau. E isso pode ser um fardo ou uma aprendizagem, depende de como o sobrevivente lida e aceita a presença do segundo felino.

Durante um bom tempo tive uma autopiedade crônica por ter dois leões em meu caminho e não somente um, como as pessoas sem deficiência. Até que percebi que todo mundo, em algum momento da vida, terá um segundo leão na jaula, possivelmente diferente do meu. Porém, serão poucos que terão coragem de compreendê-lo. Muitos os esconderão, alguns até fingirão que ele nunca existiu. Eu não tenho como fazer isso. Assumi meu maior trauma de modo explícito e verdadeiro. Foi assim que ele se tornou parte da minha vida, mas sem força suficiente para controlar ela. Sempre estarei com dois leões em uma jaula, e não tento mais controlá-los ou matá-los. Hoje eu os lidero.

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