Ausência

Apesar de ter sobrevivido a dois AVCs e ter sentido a morte de perto, ainda não sei como agir quando alguém da minha rede de afetos falece

Às vezes a gente está aqui, mas não está. Todo mundo que tem cérebro lida com crises de ausência diante de momentos traumatizantes, mas em quem tem o cérebro machucado elas se tornam mais aparentes. E isso faz a gente aprender muito sobre nós mesmos e o outro.

Há quem pense que quem viu a morte de perto saiba lidar melhor com ela. Bem, no meu caso, digo que não. Apesar de ter sobrevivido a dois AVCs e ter sentido a morte de perto, ainda não sei como agir quando alguém da minha rede de afetos falece. Infelizmente, quem teve um AVC tem certa probabilidade em ter outro, então é meio rotineiro saber de falecimentos de outros sobreviventes nos nossos grupos de apoio. A sensação é de choque, tristeza e medo de sermos os próximos.

Essas passagens para o além são ainda mais recorrentes em pessoas que sequer chegam a tempo nos hospitais para serem atendidas. São AVCistas que não sobreviveram, que também fazem parte de nossa rede em que lutamos bravamente para que ninguém mais entre. Apesar de não conhecermos diretamente essas pessoas, os amigos e familiares delas constantemente entram em contato conosco à procura de conforto. E de certa forma recebem, já que sinceramente todos nós sentimos muito por esse desenlace. Temos plena consciência de que sobreviver a um AVC é uma exceção.

Acredito que a empatia que sentimos com as pessoas em luto não esteja relacionada necessariamente ao fato de quase termos morrido, mas por nos acostumar com perdas. Sobreviver a um AVC nos revela a dolorida tarefa de lidar com a perda do nosso próprio corpo, da nossa autonomia e estilo de vida. De todas as partes que nos fazem falta.

Lidar com a dor do luto é muito complicado: não existe ação a ser feita e muito menos data limite para esse sentimento cessar. Como não nos ensinam a lidar com perdas importantes nas escolas, quando isso acontece, a sensação que se tem é de que fomos atingidos por um raio. É triste, injusto e não há absolutamente nada que possa aliviar aquela dor no peito e a vontade de não respirar.

Um dos problemas que tive nos primeiros meses de cérebro machucado foi diagnosticado como crise de ausência (um dos tipos de epilepsia). Quando saí do hospital, tive que lidar com problemas emocionais que sobrecarregaram muito o meu cérebro machucado.  Tudo isso me proporcionou crises de exaustão, fúrias e logo depois ficava quieta, absorta. As minhas ausências eram convulsões geradas por sobrecarga emocional, mas também eram um jeito de o cérebro tentar me proteger da minha rotina daquela época, porque após elas, eu esquecia o fato que as engatilhavam. Nesse caso, a perda de memória devido a uma crise convulsiva, embora destrutiva, era um jeito de o meu cérebro se focar apenas no que fosse necessário para a recuperação. Porque apenas das pequenas coisas eu dava conta, mas elas eram grandiosas para a minha cabeça.

Pode ser impressão minha, mas quando lido com pessoas que recém perderam seus entes queridos, sinto que elas estão lidando com uma espécie de crise de ausência, não neurológica, mas emocional. Elas estão absortas em tanta dor, paradas no tempo e espaço e sem nenhuma condição de seguir adiante. Não estão lidando com uma ausência epilética (como eu estava no pós-AVC), mas com a ausência da pessoa com quem compartilhavam suas vidas.

Quando eu estava em crise, não adiantava se comunicar ou interagir comigo, porque apesar de o meu corpo estar lá, eu não estava presente. Era como se a minha alma estivesse encarcerada naquela situação, e me forçar a dar o “passo maior que a perna” só me colocava numa situação de desespero, em que não tinha ideia de como sair. O meu dia era relativamente menor porque, com as crises, as partes memoráveis dele não se encaixavam. O que eu tinha eram apenas trechos de memórias de alguns momentos aleatórios do dia, que, quando relatados, pareciam bobos e até fúteis. Acho que as pessoas em luto passam por uma sensação parecida quando começam a confabular acasos nos velórios. Elas estão em estado de ausência, e tentando, de alguma maneira, voltar à realidade.

Acredito que a maioria das pessoas não gosta de ir a velórios (pelo menos, espero que não). Mas o fato é que a função social não está especificamente em se despedir do falecido, mas em dar suporte às pessoas que estão sofrendo por isso. Como não há nada mais a ser feito, não existe palavra ou ação perfeita, mas apenas estar presente para que o familiar sinta que assim que ele sair daquele transe do luto, ele tenha para onde ir. É apenas um lembrete para que ele saiba que nos importamos com suas dores. E isso vale muito.

Infelizmente, quando saímos do transe da dor ocasionado pelo baque do AVC em nossas estruturas de vida (corpo, família e financeiro), não há muitas pessoas do nosso lado. A maioria foi embora num tempo determinado, muitas vezes inferior a duração de um velório. E daí que vem a solidão estarrecedora que nos faz correr para os grupos de apoio. Chegamos lá desesperados, já que não há mais ninguém em nosso convívio.

É claro, que nesse ínterim também há o outro lado da moeda: pessoas com crises de ausência ou qualquer outra lesão cerebral recente são emocionalmente frágeis e explodem (tanto em forma de tristeza como de raiva) com extrema facilidade, e depois se esquecem. Mas para quem teve que lidar com isso, não, e a saída é se afastar. Ou então, só não teve a paciência necessária para lidar com todo o processo de luto, que pode demorar muito tempo para quem não o vive.

Lidar com uma perda não é seguir em frente e fingir que nada aconteceu. Na verdade, isso é um jeito de empurrar a sujeira para debaixo do tapete até que ele exploda, e é por isso que esse método é tão questionado pelo pessoal da psicologia. Lidar com uma perda, ao meu ver, começa com o reconhecimento de que aquela ausência existe e talvez sempre existirá. Todos os dias quando acordo, sinto falta de sentir o meu braço esquerdo e às vezes até passo um tempo lembrando de como era a sensação de acordar e sentir ele. Choro de saudade, porque sentir parte do meu corpo me faz falta. Sempre fará.

Porém, há muitas coisas que desejo fazer na minha vida (e muitas conversas para botar em dia), e escolho todas as manhãs ir em busca disso, mesmo com metade do meu corpo lesionado. Nos grupos de apoio, também sinto falta de todos aqueles que se foram, e de verdade, eles sempre farão falta, porque são inesquecíveis. Todas as pessoas são inesquecíveis, e reconhecer isso é um lindo jeito de homenageá-las.

(Dedico este texto ao Anderson, à Vanessa, à Amanda e a todos aqueles que não estão mais conosco por terem as suas vidas interrompidas por um ou mais AVCs.)

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