Bolsonaro quer deixar de herança o legado de violência e terror dos porões da ditadura

As duas décadas de ditadura são objeto de uma disputa que, até agora, perdemos. E em larga medida, porque desperdiçamos oportunidades para começar a reverter a escolha que fizemos nos modos de lembrar e lidar com o seu legado nefasto

No dia 3 de setembro de 2014, o deputado federal Jair Bolsonaro subiu à tribuna da Câmara para, em um discurso truncado e repleto de mentiras, defender o legado do golpe de 1964 e da ditadura civil militar que ele implantou. Em sua intervenção, citou alguns personagens, principalmente jornalistas, que em algum momento de suas trajetórias lutaram contra a ditadura.

Um dos nomes mencionados foi o de Miriam Leitão, “que estava chorando esses dias, na imprensa, porque foi torturada. Botaram no meu quarto uma cobra. Eu tenho pena da cobra!”. Não era a primeira vez, nem seria a última, que o agora presidente tripudiaria das vítimas e faria o elogio de seus algozes.

Ao New York Times, em 1993, recém-eleito para seu primeiro mandato, afirmou ser a favor da ditadura e da “fujimorização” do Brasil. Em 1999, em uma única entrevista, disse que era “favorável à tortura”, chamou a democracia de “porcaria” e que “não havia a menor dúvida” de que “fecharia o Congresso (…) e daria um golpe no mesmo dia” caso chegasse à Presidência.

Na Folha de S. Paulo de janeiro de 2011, chamou a Comissão da Verdade de “Comissão da Inverdade”. Segundo ele, “foram 20 anos de ordem e de progresso”; em junho do mesmo ano, dessa vez à IstoÉ, negou que o “regime militar” tenha sido uma ditadura. Ainda assim, em 2016, à Jovem Pan, disse que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”.

Suas falas e gestos mais “controversos” –, esse eufemismo que parte da mídia colou nele –, no entanto, foram aquelas que envolveram diretamente as vítimas da ditadura e seus familiares. Há o cartaz fixado à porta de seu antigo gabinete na Câmara, com a inscrição “Quem procura osso é cachorro”, ironizando a busca pelos corpos de desaparecidos políticos.

Além do inesquecível e execrável voto pelo impeachment da ex-presidenta em 2016, dedicado a um torturador sádico e cruel, o coronel Brilhante Ustra, segundo Bolsonaro, o “pavor de Dilma Rousseff”. A mesma Miriam Leitão do discurso de 2014, voltaria a ser mencionada durante um café da manhã do agora presidente com correspondentes estrangeiros, em julho de 2019.

Indagado sobre o cancelamento do convite feito à jornalista para participar de um evento literário em Jaraguá do Sul (SC), acusou-a de mentir sobre ter sido torturada – em 2014 sugeriu justamente o contrário –, embora ele próprio tenha mentido ao dizer que ela “foi presa quando estava indo para a Guerrilha do Araguaia para tentar impor uma ditadura no Brasil”.

A contradição entre as duas menções a Leitão não deve nos espantar: não se pode exigir coerência de um sociopata que mente tão naturalmente como respira.

Tal pai, tal filho

Eduardo Bolsonaro. Foto: Agência Brasil.

O defensor da tradicional família brasileira não costuma chamar seus filhos pelo nome, preferindo atribuir-lhes apenas números – menos a filha, “uma fraquejada”.

Foi Eduardo Bolsonaro, o “filho 03”, quem, no começo da semana, ressuscitou a fala sobre a tortura de Miriam Leitão ao reiterar o sentimento do pai: “tenho pena da cobra”, escreveu, para o deleite de mais de 11 mil de seus seguidores que curtiram seu tuíte. O comentário foi uma resposta à coluna da jornalista n’O Globo de domingo, em que ela acusa o presidente de ser extremista e “um perigo para a democracia”.

A essas alturas ninguém mais ignora isso, nem mesmo os eleitores de Bolsonaro – aliás, principalmente os eleitores de Bolsonaro. Não por acaso, à medida que o cenário eleitoral se define, mais e mais, pelo embate entre a “frente ampla” de Lula e a aliança entre o Centrão e a milícia, a estratégia parece ser mobilizar a militância apelando às pautas chamadas “ideológicas”.

Não é cortina de fumaça, como, aliás, nunca foi. Mas com a economia em frangalhos, a carestia, 12 milhões de desempregados, 660 mil mortos pela pandemia e as seguidas denúncias de corrupção, sobrou ao bolsonarismo recrudescer o autoritarismo, uma de suas características mais marcantes.

Estratégia amplamente facilitada em um país onde nossos passados difíceis nunca foram devidamente confrontados. A experiência autoritária recente, embora não o único, me parece ser o exemplo mais perturbador desse passado ainda presente, talvez nosso principal trauma.

Um passado que, ao mesmo tempo, não pode ser esquecido, nem lembrado, as duas décadas de despotismo são objeto de uma disputa que, até o presente momento, perdemos. E perdemos, em larga medida, porque desperdiçamos oportunidades valiosíssimas para começar a reverter a escolha que fizemos nos modos de lembrar e lidar com o legado nefasto da ditadura.

Em artigo para o blog “Entendendo Bolsonaro”, do UOL, o também historiador Murilo Cleto defende que a ascensão de Bolsonaro – “o primeiro defensor intransigente da ditadura militar a ser eleito [presidente] pelo voto direto” – deixa como legado o uso da democracia para “implodir o antigo consenso da memória social brasileira e reabilitar o discurso que predominou no país durante a década inaugural do regime”.

O argumento central, extraído de diálogo com outro historiador do período, o professor da USP Marcos Napolitano, é de que a “memória hegemônica” sobre o período começou a ser construída ainda durante a ditadura quando, por exemplo, setores que apoiaram o golpe começam a se desligar do governo. Especialmente após o AI-5, cresceu também a insatisfação da sociedade civil e a oposição ao regime.

A transição negociada, mas fundamentalmente conduzida pelos próprios militares, de que é marco a Lei da Anistia de 1979, produz um estranho arranjo. De um lado, “a relação do Estado (…) com a ditadura pode ser resumida (…) a partir de três eixos: reparação, alguma verdade e nenhuma justiça”. Mas, de outro, em um frágil equilíbrio, uma “memória crítica sobre o regime” começou a ser construída e consolidada.

Indiferença e covardia

Lula. Foto: Ricardo Stuckert.

O problema me parece, é que essa memória crítica nunca se consolidou de fato. Tampouco um consenso em torno a ela. É verdade que tivemos um átimo, nessas quatro décadas de democracia formal, em que chegamos a vislumbrar essa possibilidade.

Nos governos de FHC e, principalmente, Lula e Dilma, o Estado passou a propor um conjunto de leis e medidas, tais como a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, os planos nacionais de Direitos Humanos e a Comissão Nacional da Verdade, que sinalizavam para a possibilidade de um rompimento com a política conciliatória que marcou a transição à democracia.

Mas, de forma geral, o consenso sempre esteve relacionado à produção historiográfica sobre o período. E mesmo esse tem sido colocado em xeque, mais recentemente, por discursos e narrativas revisionistas e negacionistas como as produções da Brasil Paralelo, por exemplo. Algo ainda mais grave ocorreu com a memória social.

A Lei da Anistia, além de garantir às Forças Armadas o controle sobre o processo de transição política, instituiu uma espécie de continuidade das estratégias de implantação do terror de Estado. Colaborou, assim, para a impunidade, a imunidade e o silêncio, dificultando a construção de uma lembrança ativa sobre o período, interditando a discussão e o “acerto de contas” com o passado.

Assim, alguns dos pressupostos sociais que engendraram e legitimaram o golpe e a ditadura, permaneceram vivos e atuantes, inclusive institucionalmente.

A violência policial e as práticas recorrentes de tortura em prisões e delegacias superlotadas são, certamente, exemplos gritantes dessa sobrevivência aterradora. Mas o fato de que os governos democráticos, inclusive os de esquerda, tenham reincidido na recusa em revogar a Lei de Anistia, ignorando inclusive pedido formal do alto comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, corrobora a indiferença covarde do Estado brasileiro e sua conivência com o horror.

O resultado prático é que nossa relação com o presente, os modos e maneiras como organizamos e atribuímos sentidos ao nosso tempo – e também, em certa medida, imaginamos nosso futuro –, é condicionada pelo que chamo de “políticas do esquecimento”. Insensíveis à barbárie do passado, somos e seremos tolerantes com as formas de violência atuais e futuras.

Nossos horizontes de expectativas são estreitos porque a experiência que construímos a partir de nosso pretérito, naturalizou o terror que recebemos como herança.

A eleição de Bolsonaro em 2018, e o risco de uma eventual reeleição nesse ano de 2022, é também resultado dessa outra memória, algo subterrânea, presente nos quarteis, mas também fora deles, que atuam ativamente desde a redemocratização no sentido de banalizar o mal que a ditadura produziu. Um empreendimento moral e político dedicado a reafirmar a importância do golpe – da “revolução”, dizem eles – e reafirmar suas conquistas.

A principal contribuição de Bolsonaro e do bolsonarismo a esse processo foi abrir a tampa do esgoto.

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