As viagens com Elisa

Durante meus episódios de delirium, todo o tempo e espaço eram inconstantes

Campo de batalha medieval, casa amarela, Templo de Delfos e hospital. Durante meus episódios de delirium, todo o tempo e espaço eram inconstantes. A minha única realidade era a presença de uma médica intensivista, que me acompanhou em meu retorno à realidade.

Eles vieram em maio de 2019, logo depois de que acordei do primeiro coma. E se estenderam nos meus vinte e um dias de UTI, bem na época do “vai ou não vai”. Eram meus sonhos lúcidos que misturavam minhas ideias com a realidade, o que é chamado pelos médicos de delirium.

Delirium (escrito assim, no latim) é um estado de confusão mental neurológica e passageira, ocorrida devido a uma lesão cerebral ou alguma infecção no organismo (muitas vezes urinária). Na comunidade médica, ele é diferente do delírio (em português), que é um evento recorrente e mais ligado à área da psiquiatria. Como paciente (e da área de Humanas), não sei ao certo até que ponto eles são similares para quem os sofre. Só sei dos fenômenos que vivenciei, que fazem parte do primeiro caso, e que serão relatados para você, caro leitor.

Tudo começou quando acordei da primeira cirurgia cerebral, e às vezes estava deitada numa maca, e outras vezes estava numa grama avermelhada de um campo de batalha da Idade Média com muita dor de cabeça. No campo, eu conseguia me levantar e me mexer, enquanto na maca, me encontrava com os braços e pernas amarrados. Com isso, primeiramente preferi viver no campo, já que lá eu tinha mais liberdade. Depois, no ambiente branco hospitalar, me disseram o que tinha acontecido: um tal de AVC hemorrágico aos 34 anos, que, no início, achei se tratar de uma mentira.

Em outro dia, me disseram que me levariam para um exame ou para tomar banho (não me lembro), e passamos por um corredor amarelo que rapidamente se transformou no interior de uma casa amarela. Sempre tive certa fascinação por casas amarelas, mas esta era especial porque nela alguém estava assando um bolo, que seria de abacaxi, e então comentei com um rapaz para ele guardar um pedaço de bolo para mim, e ele me informou que ainda não comia, já que minha nutrição era feita por uma sonda.

Em uma tarde, uma enfermeira me ajeitou na cadeira de rodas e, olhando para o nada, eu me lembrei daquele aforismo grego que está no Templo de Apolo em Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”, e de repente me vi naquelas ruínas gregas com aquele céu azulado que a gente só vê naquelas fotos da Grécia. Procurei pelos escritos gregos e me lembrei que não saberia decifrá-los, porque eu mal entendia o grego antigo. Fiquei frustrada, deveria ter frequentado mais aquele curso na faculdade.

Alguns dias depois estava em um domingo, porque havia um programa típico deste dia da semana na televisão. Tinha visita e tentavam me alimentar. De repente, estava na sala de estar da minha tia-avó (já falecida) e era criança. Pedi para comer macarrão, mas não tinha. Então chamei pelo meu primo Khaleo, com quem eu brincava na minha primeira infância, mas ele também não estava lá. Exaltei-me porque via as nossas estradinhas formadas por embalagens de sementes em volta da sala (se havia estradinhas, meu priminho haveria de estar lá), e então Elisa, a médica intensivista que me acompanhava, me disse que aquilo não era real, mas delirium. Eram confusões sensoriais entre a realidade e as minhas memórias oriundas do meu cérebro muito machucado. Ela me informou que precisava me acalmar e tentar dormir, pois era uma adulta internada na UTI.

Dias depois tive o meu segundo AVC, agora isquêmico, e estava numa maca com Elisa novamente ao meu lado, enquanto uma outra médica fazia uma espécie de ultrassom na minha cabeça (o nome desse exame é doppler cerebral). Elisa pediu para eu mexer o braço direito: e eu mexia. Ela pediu para eu mexer a perda direita e eu também mexia. Mas, então ela pediu para eu mexer o lado esquerdo do corpo e nem a minha perna, tampouco o meu braço se movimentava. Ela pediu para que eu os mexesse com muita força, mas eu não conseguia. A outra médica, que estava examinando a minha cabeça, suspirou forte e disse que não havia vibração alguma no tal aparelho. Era um mal sinal. Fiquei nervosa e me vi numa mesa de tortura: eu estava imóvel e iriam me machucar. Comecei a tentar fugir, mas Elisa me segurou e disse olhando para mim: “Camila, calma. É delirium. Confia em mim, você está segura.”

Esses não foram os meus únicos deliriuns, mas são os que ainda me lembro.Foi uma série deles durante os meus vinte e um dias na UTI, e para mim, vivenciá-los significava que eu estava entre a vida e a morte. Eles me tiravam a consciência do que estava se passando, e faziam com que as minhas percepções fossem incompatíveis com a realidade. Confundia a equipe da UTI com antigos amigos e namorados, me via em casas em que frequentei ou que sonhava morar algum dia.

Toda a realidade se intercalava entre bons momentos e os terríveis procedimentos hospitalares, porém quando eu estava perdida em uma dessas realidades paralelas, ao ouvir a doce voz de Elisa, eu conseguia voltar para a realidade. Para ela, eu fui mais uma paciente, para mim, sua presença foi o meu porto-seguro. Ela era a minha conexão com a vida, num momento em que o além me puxava e me seduzia. De certo modo, Elisa foi a minha companheira das viagens proporcionadas pelo delirium, porque ela entrava dentro deles e me puxava para esse nosso mundo, me resgatando para a vida. Apesar de meus deliriuns demonstrarem a gravidade do estado do meu cérebro, e até preocuparem a equipe médica, foram eles que me mostraram qual caminho seguir para sobreviver aos AVCs. Tudo dentro da minha cabeça.

Aos poucos, os sonhos lúcidos foram se espaçando e dando oportunidade para os sonhos de verdade, em que me era permitido acordar. Ainda me recordo do meu primeiro sonho tido no hospital, em que o contei para Elisa, como se fosse mais um delirium, e ela me disse que tudo aquilo tinha sido um sonho, pois eu tinha acabado de despertar. E eu disse: “Elisa, isso é sinal de que estou melhorando!” E ela: “Você está”, e sorrimos juntas. Foi neste dia que descobri que iria sobreviver. Para mim, foi o primeiro dia da minha segunda vida.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Há saída para a violência?

Há que se ter coragem para assumir, em espaços conservadores como o Poder Judiciário, posturas contramajoritárias como as que propõe a Justiça Restaurativa

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima