No Brasil, a tortura une nosso passado e o presente

A tortura tornou-se prática banal, autorizada pelo Estado e a indiferença da maioria. No Brasil, parafraseando o filósofo Giorgio Agamben, a tortura há tempos deixou de ser exceção para se tornar a regra

O general Newton Cruz faleceu no último final de semana, de causas naturais. Tinha 97 anos. Um dos chefes do SNI e integrante da chamada “linha dura” do Exército, no final dos anos de 1970 se opôs à abertura “lenta, gradual e segura” e, depois, à liberação dos documentos do período de terror que ajudou a comandar.

Com a retomada democrática, teve uma vida longa, tranquila e relativamente próspera.

No mesmo final de semana, a jornalista Miriam Leitão divulgou, no jornal O Globo, áudios das sessões do Superior Tribunal Militar, abrangendo um período de 10 anos – de 1975 a 1985 –, coletados pelo historiador Carlos Fico, professor titular de História do Brasil na UFRJ e um dos principais estudiosos do período.

Se o que veio a público é a ínfima parte das mais de 10 mil horas de gravações, ainda assim é suficiente para termos mais que uma vaga ideia da extensão da tortura praticada pelo regime. Entre outros, há o relato de uma confissão obtida a marteladas; de um preso que passou dias sem comer; e de uma presa política que sofreu aborto após receber choques elétricos nas genitais (clique aqui para ouvir os áudios).

Newton Cruz foi chefe da SNI entre 1977 a 1983. Foto: reprodução.

O governo e o alto escalão militar sabiam de tudo. Sempre souberam. A tortura, afinal, não era uma exceção, como sugeriu o general e vice-presidente Hamilton Mourão, não sem antes debochar das vítimas e fazer pouco caso do episódio.

Tampouco se tratava do resultado natural de uma “luta”, em que ambas as partes cometeram “exageros”. Uma delas, a oposição, usou de meios os mais diversos, inclusive, mas não apenas, a luta armada, para enfrentar uma ditadura ilegal, ilegítima e violenta, que manteve o país, por duas décadas, sob um regime de exceção.

Sugerir a simetria entre o terror de Estado e a oposição a ele, independente dos artifícios empregados, não passa de uma mentira que, repetida mil vezes, jamais se tornará uma verdade. É e continuará sendo apenas uma mentira repetida mil vezes pelos que, deliberadamente ou não, fingem ignorar os crimes e atrocidades cometidas pela ditadura. E que, em alguma medida, se beneficiam do esquecimento.

“Até o diabo saía em pânico”

Hamilton Mourão. Foto: ABr.

Entre 1970 e 1972, anos antes dos áudios obtidos por Fico, o coronel da Polícia Militar, Riscala Corbaje, atuou junto com o exército torturando presos políticos nas sessões de interrogatório do DOI-CODI do 1º Exército, na Tijuca, Rio de Janeiro. Em depoimento ao grupo Justiça de Transição do Ministério Público, em 2014, “Nagib”, codinome que usava nos porões e onde torturou cerca de 500 pessoas, classificou o que acontecia por lá de “um massacre”. 

A “sala do ponto”, onde os presos permaneciam pelas primeiras 48 horas, sofrendo as mais diversas sevícias, era um lugar tão terrível que “até o diabo, se entrasse ali, saía em pânico”. No depoimento, Riscala conta que foi parar no DOI-CODI com outros nove oficiais da PM, depois de trabalhar como P2 e passar muito tempo “interrogando presos de favelas para saber onde havia depósito de armas”.

O testemunho do coronel é corroborado pelos áudios, que revelam a prática sistemática, pela polícia militar, de torturas também em presos comuns. Um dos ministros do STM chega a afirmar que “ficava com um pé atrás” quando o inquérito vinha da corporação, “porque o que se sente é que na polícia, no DOPS, eles entram no pau. Ou confessam ou então apanham”, afirma. Colocadas lado a lado, as falas de “Nagib” e do ministro militar põem em perspectiva e lançam outras luzes sobre o tema. Costuma-se falar que a violência policial é um dos mais fortes indícios da sobrevivência da ditadura entre nós, uma de suas heranças malditas, a atravancar e atrasar a consolidação de uma efetiva cultura democrática e de Direitos Humanos.

Indiferença e banalização da violência

Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil.

Mas é preciso dar um passo atrás. Se a tortura nos becos, ruas e vielas das periferias, nas celas de delegacias, presídios e penitenciárias, é um sintoma ainda presente da nossa última ditadura, ela própria, a ditadura, incorporou uma prática recorrente das polícias brasileiras no controle das chamadas “classes perigosas”, basicamente, nossa população pobre e, quase sempre, negra.

Historicamente, a tortura tornou-se prática banal: são indistintamente sujeitados à conjugação de dor física e humilhação moral que a caracteriza, velhos internados em asilos, doentes mentais em hospícios, presos maiores e menores de idade.

Autorizada pelo Estado e a indiferença da maioria, ela produz a naturalização da violência que, admitida como um dos componentes de nossa vida social, não pode por isso ser considerada uma anomalia, uma aberração, um desvio: no Brasil, parafraseando o filósofo italiano Giorgio Agamben, a tortura há tempos deixou de ser exceção para se tornar a regra. 

Ela ajuda, igualmente, a entender as razões que levaram ao poder apologistas da violência que têm por ídolo o coronel Brilhante Ustra, notório por sentir prazer enfiando ratos nas vaginas das mulheres que torturava, considerado um herói nacional pelo general Mourão, aquele que debochou dos áudios e quer relegar tudo isso ao passado, ou seja, ao olvido.

Brilhante Ustra, aliás, morreu como seu companheiro de caserna e de porão, Newton Cruz. Se Ustra, pelo menos, chegou a ser condenado civilmente em 2008 – pena depois, extinta pela Justiça paulista –, Cruz nunca respondeu por nenhum de seus crimes, inclusive o atentado à bomba ao Riocentro, pelo qual foi acusado. Sua vida e sua morte são a cara de um país que não acertou as contas com seu passado autoritário e nunca puniu os terroristas que o governaram. Um país que elege Bolsonaro presidente e deixa um criminoso como Newton Cruz viver e morrer em paz.

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