Acesso restrito

Rampas, elevadores, banheiros adaptados, pisos táteis e calçadas rebaixadas são apenas um tipo de acessibilidade, porém há diversas outras maneiras de promover acesso, como a inserção de recursos comunicacionais

Geralmente, quando pensamos em acessibilidade, a primeira coisa que vem à mente é a imagem de uma rampa. O termo é muito mais amplo do que isso, e talvez pouco se saiba de sua abrangência, porque nem a rampa ainda é devidamente acessível.

No dia 3 de dezembro de 2021, exatamente no Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, Lorrane Silva, uma célebre digital influencer, desistiu de embarcar em um avião por ter a sua scooter barrada pela companhia aérea. Como a Pequena Lo (seu nome artístico) é uma pessoa com deficiência, ela utiliza o aparelho em questão para se locomover, substituindo a cadeira de rodas. Emocionalmente abalada pelo constrangimento (o voo atrasou mais de uma hora por causa disso), a influenciadora denunciou o caso em suas redes sociais onde é seguida por mais de 4 milhões de pessoas (sim, o número é esse mesmo), e, logo após a exposição do caso, “milagrosamente” os questionamentos sobre a bateria utilizada no equipamento (o tal motivo da proibição do embarque dele) sumiram. E ela, a mãe e sua “motinha” foram imediatamente encaminhadas para outro avião da mesma companhia. Talvez o caso tenha se revolvido “rapidamente” por Lorrane agora ser famosa, mas a situação que ela enfrentou infelizmente é bem comum em sua vida, assim como na vida de milhões de pessoas com deficiência: a falta de acessibilidade.

Acessibilidade é a possibilidade de acessar qualquer lugar, serviço, produto ou informação. Trata-se de um direito de todos, independentemente de idade, gênero e classe social, mas que quase sempre é negado às pessoas com deficiências. Ao contrário das pessoas sem deficiência, a gente precisa lutar pelo nosso direito de ir e vir. Eu só fui perceber a dimensão disso após sofrer os AVCs e ser liberada para casa em uma situação diferente de outrora: com muita dificuldade de mobilidade.

O mundo das cidades é muito difícil: com calçadas esburacadas, excessos de escadas e pessoas sem o mínimo de empatia. A sensação que eu tinha era de que o mundo fora da minha casa não era mais para mim e que agora, sendo uma pessoa com deficiência, eu não era mais bem-vinda. E, no fundo, a falta de acessibilidade é isso: uma cruel forma de higienização visual que impõe diversas barreiras para que as pessoas com deficiência desistam de frequentar um determinado espaço. Os desafios físicos e psicológicos são tão intensos que é praticamente uma afronta estarmos lá. Parece até que a gente se torna menos gente, mesmo pagando os nossos impostos como todo cidadão.

De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Brasil tem mais de dezessete milhões de pessoas com algum tipo de deficiência. Quantas delas você conhece? Quantas você vê nas ruas? A maioria dessas pessoas estão em casa, porque é lá que elas se sentem seguras, e um dos motivos disso é a falta de acessibilidade. Sem acesso, nos tornamos invisíveis, e até certo ponto inexistentes, o que contribui para o aumento do preconceito, já que, ao não sermos vistos, deixamos de ser normalizados e, assim, nos tornamos “aberrações”, “coitadinhos”: os piores adjetivos para uma pessoa com deficiência.

Antes de eu sofrer os AVCs, achava que acidentes vasculares cerebrais só aconteciam com pessoas idosas (uma falácia), e que quem sobrevivia a eles ficava muito mal, praticamente com o “pé na cova”. Uma visão extremamente estereotipada e preconceituosa que me prejudicou muito quando me vi na situação de sobrevivente. Sendo sincera, eu acreditava que não passaria dos seis meses de vida e não ousava fazer planos para os próximos meses, quiçá anos. Eu nunca tinha visto ninguém que tivesse passado pelo mesmo que eu jovem, e isso fez com que me sentisse a eterna “menina do AVC”, uma designação que definitivamente não queria para mim, mas que na época, não me via em outra opção.

Uma das primeiras sobreviventes que encontrei pessoalmente foi uma guria daqui de Curitiba que teve AVC com dezoito anos. Marcamos de nos encontrar em um local público, e levei um susto ao me deparar com o quanto ela era versátil e “normal”. Ela me contou sobre suas viagens, seus estudos, seus namoros, seu casamento, enquanto me ensinava truques e adaptações para lidar com as nossas deficiências em comum. Ela me mostrou que o mundo era dela, e que poderia ser meu também. Mas, isso não seria possível se ficássemos em casa. Precisamos ter acesso ao lado de fora para ousar ter experiências.

Rampas, elevadores, banheiros adaptados, pisos táteis e calçadas rebaixadas são apenas um tipo de acessibilidade, que são aquelas adaptadas às estruturas dos ambientes. Porém, há diversas outras maneiras de promover acesso, como a inserção de recursos comunicacionais (legendas, áudios, descrições audiovisuais, linguagem em braile etc.) e digitais (facilitadores de navegação e interação em ambientes virtuais). Também temos a acessibilidade promovida em meios naturais, como aquelas que ocorrem nas praias adaptadas em que há passagem para cadeirantes até o mar. Além disso, garantir que leis, regulamentos e decretos sejam acessíveis para todos é um modo importante de acessibilidade, e combater estigmas e preconceitos também é. Por isso, quando pedimos para ser chamados de PCDs (pessoas com deficiência) e não aqueles adjetivos desqualificadores horrorosos, estamos também estamos exigindo um direito à acessibilidade.

Antes de ter AVC, vivia em minha bolha de pessoa sem deficiência, e não tinha noção do mundo cor de rosa em que vivia. Nem reparava muito se o ambiente em que frequentava era acessível e se as pessoas ao meu redor tinham alguma deficiência. Minha alienação me cegava, e quando me deparei com a realidade, percebi que nenhuma diferença é um bicho de sete cabeças, mas parte da nossa diversidade. Ao pensar assim fui aceitando melhor o que aconteceu comigo e quem eu sou. Ser diferente é normal. Basta ter acesso para ver.

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