Um Boeing 747, a minha mãe e o filme ISO 100

Todas as tardes eram praticamente iguais. Avião pousava, avião decolava. E o clique na máquina torcendo para ter congelado o momento em que os pneus do avião tocavam o asfalto

A minha memória não é das melhores. Não importa a época, ela é feita apenas de flashes que tentam se conectar para dar algum sentido a um acontecimento qualquer. O roteiro completo, infelizmente, ficou pelo caminho. E é a partir desses fragmentos que vou contar uma breve história de um adolescente apaixonado por aviação. No caso eu, obviamente, mas também que envolve outras pessoas.

Não vou lembrar exatamente quando ocorreu – já avisei que vai ser assim -, mas acredito que tenha sido em qualquer dia de semana de 2000. Nesse período eu estava no segundo ano do Ensino Médio. A vida era fácil, aliás, muito fácil. Ia para o colégio de manhã e de tarde costumava partir para o aeroporto Afonso Pena.

Tirava do bolso a nota de 1 real e pegava o ligeirinho ali no Círculo Militar. Comigo uma mochila com o básico: uma câmera fotográfica (de filme) e um rádio para ouvir a comunicação entre pilotos e controladores de voo. Sim, isso era o básico para quem gostava de aviação na época. Hoje nem consigo imaginar o que o pessoal leva na mochila.

Todas as tardes eram praticamente iguais. Avião pousava, avião decolava. E o clique na máquina torcendo para ter congelado o momento em que os pneus do avião tocavam o asfalto. Raramente dava certo e só tinha a certeza de que não havia funcionado quando buscava o filme revelado na Colorama perto de casa.

Em um aeroporto como o Afonso Pena, não havia tantos alvos diferentes para a câmera. Eram os Boeings 737 da Varig, da Vasp, da Transbrasil e da Rio-Sul. Os Fokker 100 da TAM. Os EMB-145 da Rio-Sul. De vez em quando os 727 da Vaspex e da Varig Log. E de vez em quase nunca um 767 da Transbrasil.

Mas aí, já anoitecendo, o quase inimaginável aconteceu. Um Boeing 747, sim, o famoso Jumbo, resolveu dar as caras em São José dos Pinhais. Hoje ele é figura carimbada por aqui, mas naquela época era uma raridade. E, por isso, era um evento sem igual, que fazia o adolescente abrir um sorriso daqueles.

Eu não sei se foi a primeira vez que vi um na minha frente. Muito provavelmente sim. Estava marcado na fuselagem American International Airways. Nem sabia da existência dessa empresa. Mas sabia que era um Boeing 747-200 para transporte de carga. E era impressionante. Destoava demais dos outros aviões. Era enorme. Imponente.

Imagina só que sonho seria entrar nesse avião?

Foi o que pensei. Eu e o meu amigo de colégio, Everton, que nutria da mesma paixão pela aviação – hoje, aliás, ele é piloto de uma companhia aérea brasileira. Naquele tempo os protocolos de segurança não eram tão rígidos, o que mudaria no ano seguinte com o 11 de Setembro. Então, era questão de convencer alguém a deixar dois piás irem até o avião e passar alguns minutos. Simples assim.

Grudamos no pessoal da Infraero e jogamos nossos argumentos, que devem ter sido muito bons, porque funcionou. Pediram, claro, para que esperássemos para que pudessem nos buscar no terminal e nos levar até o avião. Deve ter demorado, porque já era bem noite quando nos levaram até o início da escada do avião.

Assim, de baixo, o 747 é ainda maior. Um belo momento para fotos, claro. E subindo os degraus, pronto, estávamos dentro do gigante. Do lado direito, tudo vazio. Do lado esquerdo, aí sim, onde a mágica acontecia: o cockpit, a cabine de comando.

Os pilotos estavam por lá. Não sei se perguntaram alguma coisa, não sei se perguntei alguma coisa, se abri a boca. Meu inglês era ok, acho. Mas nem deve ter usado. O que lembro é que saquei novamente a Kodak da mochila e não economizei o rolo de 36 poses. Foi até o fim.

Entre a saída do terminal e a volta não devem ter passado mais de 20 minutos. Longe disso. Mas a espera anterior é que foi longa. E foi tão longa que assim que pisei no terminal novamente, uma funcionária da Infraero mandou a pergunta: “um de vocês é o Gustavo?”.

Respondi que sim, mas com algum receio. Coisa boa não viria por aí. Eis que ela diz para eu esperar numa sala porque minha mãe estava a caminho. Pronto, a casa tinha caído. Minha mãe se desabalar até o aeroporto era porque eu tinha aprontado. Só então me dei conta que não fiz o básico, que era ter gasto um minutinho no orelhão do aeroporto para avisar que ficaria um pouco mais no aeroporto. Tempos pré-WhatsApp.

Como qualquer outro adolescente, fiquei vermelho de vergonha. Afinal, alguém que conseguiu entrar em um Boeing 747 no Afonso Pena, não precisava ficar esperando pela mãe né. Ainda mais porque fiquei sabendo que anunciaram meu nome pelo aeroporto. Sim, minha mãe havia ligado para o aeroporto, afinal o cidadão aqui não havia dado notícias.

Não demorou muito e ela chegou. Ela e a minha irmã mais velha. Não vou lembrar o que ela falou, mas certamente o esporro foi daqueles. Não por acaso que até hoje ela faz questão de relembrar com alguma frequência essa história. Do ponto de vista dela, é claro. Que achou que eu tinha sido sequestrado, morrido. Jamais passou pela cabeça dela que um Boeing 747 havia pousado no Afonso Pena e que eu teria ido até ele? Falta de imaginação, certo?

O importante é que no dia seguinte já fui na Colorama para revelar o filme com as fotos do Jumbo. O processo era meio demorado, acho que de um dia para o outro. Fui buscar e sequer esperei chegar em casa para ver. Quando abri o envelope com as fotos, foi pura decepção. Não havia uma foto que prestasse. Só borrões de luzes e silhuetas irreconhecíveis.

Foi quando aprendi que filme ISO 100 numa Kodak amadora não faz milagre. E por isso, enquanto tive câmera analógica, só entrava filme ISO 400. Vai saber quando outro 747 daria as caras.

*Em tempo. Até procurei pelo negativo na caixa de fotos, mas não encontrei nenhum sinal das fotos. Eram ruins, certamente joguei fora. Fez falta agora, infelizmente. Então joguei uma da mesma época que tinha por aqui, genérica.

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