A escada de Doralice

Reabilitar-se pós-AVC é difícil, mas não impossível. É como subir uma escada íngreme e escorregadia. Enfrentar nossas limitações é encarar os nossos medos mais profundos. Saga que não é para qualquer um, porém, compatível com todo sobrevivente de AVC.

Um passo de cada vez. Este era o pensamento de Doralice ao olhar a imensa escada do centro de sua casa. Olhar a escada era ao mesmo tempo um desafio e um refúgio em suas reflexões internas. Isso porque elas eram inúmeras e, assim como a sua atual situação, repletas de contrastes. Aquela escada íntima, e tão repleta de memórias de subidas e descidas, de idas e vindas, representava muito bem a ironia daquele momento de sua vida. Talvez, pela primeira vez, ela se sentia impotente diante do que mais desejava.

Doralice tinha sobrevivido a um AVC isquêmico, e assim como muitos de nós, estava apta para voltar para casa, mas impossibilitada de deitar-se em sua cama. Como mora em um sobrado, a parte térrea do imóvel foi carinhosamente adaptada para recebê-la. Uma cama não sua, travesseiros amontoados e vários medicamentos numa improvisada cabeceira. Assim são os nossos dias após a alta hospitalar. Uma mistura confusa entre casa e hospital, sem mobilidade, sem independência, quase tudo pela metade.

É difícil falar em independência porque tal conceito é muito individual, muito variável a cada vivência. Mas, cada um de nós podemos comparar a nossa autonomia a um objeto simples do cotidiano, cujo significado vai muito além da matéria do que ele é feito. Assim era a escada de Doralice. Algo à primeira vista muito comum, porém com um significado imenso, muito além de seu nome. A escada era o que a impedia de ir para o seu quarto, e ao mesmo tempo o caminho até ele. Mais uma dessas coincidências e ironias que a vida nos implica após sofrer um AVC.

Perder a mobilidade é algo tremendamente frustraste. É como se a partir do instante que aquela parte perde a sua funcionalidade, não houvesse mais razão para ela estar lá. É uma amputação ao contrário, que não é visível, mas é sentida pelo nosso cérebro e nossa alma. Por isso tantas dores e tanta inércia. Faz parte de todo o processo.

Também faz parte do processo olhar o que tinha sido e agora não é mais: a nossa vida agitada repleta de andares e afazeres, que se restringiu a uma mistura de quarto e sala, sem objetivos e sem individualidade. Tudo que a gente mais quer é voltar a ter a vida de antes. Tudo que Doralice queria era subir os degraus daquela escada e voltar para o seu quarto. Na prática, ambas as ambições se configuravam em excessos de altura e pedaços… De madeira.

Subir uma escada pode ser algo trivial para muitos, mas para quem teve o cérebro machucado e precisa lidar com a limitação da hemiplegia ou hemiparesia, é uma odisseia para poucos. Subir uma escada significa lidar com várias sequelas ao mesmo tempo: dor, fraqueza, desequilíbrio, foco, concentração, medo.

Cada sequela precisa ser estrategicamente tratada e reabilitada, mas não se engane, nada voltará a ser o mesmo de antes. No AVC e na vida, a gente estrutura o caminho com o que vamos aprendendo, e vamos juntando todas essas experiências para chegar aonde queremos. Tudo é muito simples e complexo: se o nosso objetivo está muito longe, ao ponto de até parecer impossível para alguns, a solução é construir etapas para se chegar até ele. Assim como uma reabilitação é formada de diversos estágios, conquistar o que queremos requer treinamento e segurança similares ao que necessitamos para subir uma íngreme escada. A escada do pós-AVC.

Mesmo que esta escada tenha tamanho e solidez diferentes para cada um, o caminho para subi-la é o mesmo: acreditar. E, sim, todo AVCista acredita no que é considerado impossível, porque em sua primeira vida ele já era um sobrevivente de outras mazelas, de outros temores. Até hoje não conheci sobrevivente que tinha sua primeira vida considerada fácil. Todos eles têm histórias de resiliência e resistência admiráveis. Todos já conhecem o caminho da limitação e da dificuldade, sejam elas financeiras, familiares, de relacionamentos e de preconceitos. Todos já negaram a hipótese de desistir dos seus propósitos e continuaram seguindo em frente na primeira vida, então por que agora, diante das sequelas de um AVC, seria diferente? Antes de acordar do coma, cada um já era herói de sua batalha diária. Só estamos continuando, mas de outro jeito, em um nível mais difícil, mas não impossível. Desconhecemos essa última palavra muito antes de sofrermos um AVC.

Antes de subir uma escada, é preciso voltar-se para ela. Encará-la, estudá-la. “Se eu cair aqui, me seguro ali”. “Se aquele canto é difícil, é melhor apoiar a perna boa nele e me segurar com a mão boa naquele corrimão”. “Se der tontura, eu tento me sentar ali”. “Se eu cair, faço tal manobra para não me machucar” … Diante de tantas dificuldades, é fácil pensar que não é possível realizar tal façanha sozinho. Não, meu caro, assim como cada caminho é único, é somente sozinho que se chega lá. É claro que apoio e treinamento são primordiais, e todos merecem recebê-los, mas a coragem e a audácia vêm somente de quem quer cumprir sua jornada.

Todo sobrevivente de AVC, no fundo, sabe disso. Não adianta ir à fisioterapia, à fonoaudiologia ou à terapia ocupacional se não acreditar nelas. Aquele foco obstinado que alguns chamam erroneamente de esperança, mas que gosto de chamar de vontade, é que faz toda a diferença. No fundo, é a vontade que a gente tem de andar que nos faz dar os primeiros passos, é com a vontade de falar que redescobrimos novas palavras. É a coragem de continuar seguindo em frente que nos faz continuar vivendo mesmo diante de tantas limitações.

Assim como nossos exames, a vida pós-AVC é cheia de contrastes: é morrer e continuar vivendo, é deixar de andar para passar a marchar, é falar de um jeito diferente ao ponto de ser confundido com gringo. É subir escadas como quem escala uma montanha. E assim, e como em todas as vitórias, chegar até ela é uma luta, com dias de derrotas e outros de vitórias. Cada movimento reconquistado é uma glória tão grande que dificilmente poderá ser expressa somente em palavras.

Para subir sua escada, Doralice também deve ter passado por vários medos e obstáculos. Coisas que só ela sabe. Talvez por princípio ou generosidade, resolveu compartilhar cada conhecimento apreendido em seu canal na internet, tudo de forma respeitosa e gratuita a todos aqueles que não tinham a mesma oportunidade de aprender. Durante o percurso de subir a sua escada, Doralice tornou-se mentora de sobreviventes. Sem ao menos perceber a grandeza de sua opção. Talvez só tenha olhado para o lado e dito para si: “por que não compartilhar a estratégia para alcançar mais este degrau?” E assim, além de subir a sua escada, ela possibilitou milhares a terem a mesma evolução.

Acho que além de se chegar até um determinado lugar, o mais importante é aprender o caminho para se chegar até ele. Ao buscar a sua vitória, Doralice nos ensinou (e ainda ensina) que a nossa conquista também é possível. Para todos nós, sobreviventes de AVC, A Vida Continua.

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