A droga da comparação

A comparação estimula tanto os nossos questionamentos como as nossas frustrações, mas como enxergar a linha tênue que enquadra esses limites? Haja maturidade e terapia para conseguir enxergá-las!

Seja em pequenas ou grandes doses, diariamente nos medicamos (ou nos drogamos) da vida alheia. Até que ponto a mesma pílula pode salvar ou sentenciar uma pessoa? Se eu e você somos tão diferentes, como devemos lidar com a droga da comparação?

Não sei ao certo quando tomamos a nossa primeira dose, só sei que é cedo, muito cedo, talvez ainda na maternidade. Quem sabe em algum momento, no berçário, onde somos admirados por inúmeros rostos desconhecidos, comecemos a adivinhar qual deles nos levará para casa, e instintivamente avaliar quais são os melhores ou piores. Não se sabe ao certo se a arte de comparar já nasce conosco, mas não há dúvidas de que a aprendemos muito rápido e de que fortemente a estimulamos no decorrer da vida, por mais viciante e tortuosa que ela seja, pois sempre haverá alguém mais capaz, mais bonito e mais inteligente a cruzar o nosso tão frágil caminho. Mas, mesmo assim, continuamos. Olhamos para o lado, no cruel jogo de vencedor e perdedor, tão glorificado por norte-americanos, mas que nos limita e destrói lentamente todos os dias.

Comparar-se é tão viciante e faz tão parte de nossa rotina, que nem percebemos quantas vezes fazemos isso por dia, de tão entorpecente que se é. Quem trabalha com marketing ou publicidade sabe muito bem disso, e tem plena consciência de que ganha a vida às custas da inveja e da insatisfação alheia, assim como os representantes de remédios sabem que quem paga os boletos é a infelicidade ou o desespero de terceiros.

Confesso que não tinha dimensão da monstruosidade desse hábito até sofrer os meus acidentes vasculares cerebrais em 2019, já porque no extremo de se perder tudo, é impossível não se comparar com as outras pessoas e consigo mesmo antes do fatídico dia. E de todas as minhas recordações, lhe digo: nunca houve comparação pior!

Depois do AVC, especificamente assim que recebi a alta do hospital e voltei para casa, instantaneamente comecei a me comparar com as pessoas queridas que iam me visitar, simplesmente porque elas eram capazes de fazer coisas corriqueiras como: comer, andar e beber. Acredito que não exista ser humano que se encontre em situação de saúde tão frágil que consiga resistir a olhar para os “saudáveis” sem saudade. Há quem diga que esse sentimento é de inveja, mas discordo, porque não há vontade de estar no lugar dessas pessoas, apenas de também usufruir da liberdade de habitar um corpo capaz de suprir um simples desejo, como o de ir ao banheiro sozinho, por exemplo. Um corpo simples e forte que até pouco tempo atrás se tinha, mas sequer se valorizava. Lembro que um dos meus pensamentos mais recorrentes naquela época era: “Nossa, Camila, agora, sim, você chegou no fundo do poço.” Um pensamento catastrófico que não iria me trazer nada de benéfico. Mas, assim como toda comparação, era viciante, e sempre me rondava… e me atormentava a alma.

Já que a comparação é uma droga amplamente legalizada, é bom lembrar que ela não causa apenas danos. Já que por meio dela também podemos encontrar novos objetivos e novas formas de chegarmos até eles.

Também havia, e ainda há, outro tipo de comparação que me incomodava, e ainda incomoda: o de outras pessoas relacionarem suas experiências pouco semelhantes perante ao que passei. Apesar de acreditar que, muitas vezes, essas analogias pudessem ser tentativas de aproximação de infortúnios, na maioria das vezes, sentia que elas invalidavam o meu sofrimento. Operar o cérebro é muito mais dolorido e impactante do fazer uma cirurgia de apêndice; deixar de andar por recém adquirir uma deficiência é mais traumatizante do que ficar em repouso por quebrar uma perna; e gastar toda a poupança ou fazer um empréstimo para cobrir os súbitos gastos advindos das consequências de um AVC não chega a um décimo do que é perder a mesma quantia em algum mal investimento. Na prática, não existe aquele papo de “mas para mim tal coisa também era importante”. Simplesmente não é a mesma coisa. Certas dores são incomparáveis e somente pedem empatia e respeito. Sobreviver a um AVC e lidar com as consequências dele é uma delas.

Já que a comparação é uma droga amplamente legalizada, é bom lembrar que ela não causa apenas danos. Já que por meio dela também podemos encontrar novos objetivos e novas formas de chegarmos até eles. Podemos conquistar melhores empregos, melhores relações e melhores formas de ver a vida seguindo caminhos similares aos de pessoas que admiramos, ou simplesmente fazer cruciais ajustes no nosso percurso ao adaptar uma ideia de alguém. Um exemplo de comparação bem positivo, que nós AVCistas usamos muito na nossa recuperação, é o de focar em nosso desenvolvimento a partir do instante em que saímos do hospital. Aos olhos de pessoas que nunca vivenciaram situação semelhante, a nossa evolução pode parecer insignificante, já que ela é lenta. Mas não se engane, ela é grandiosa. Cada um de nós sabemos muito bem disso.

A comparação estimula tanto os nossos questionamentos como as nossas frustrações, mas como enxergar a linha tênue que enquadra esses limites? Haja maturidade e terapia para conseguir enxergá-las! Cada organismo, assim como cada pessoa, é único, por isso é tão difícil mensurar a quantidade de doses adequadas tanto para o nosso desenvolvimento como dependência, assim como a hora certa do desmame (termo utilizado para quando diminuímos a dose de um medicamento até finalmente o deixarmos de tomá-lo). É preciso se conhecer para saber esse limite, uma árdua tarefa, que nunca será feita se o foco da vida não estiver em si.

Todo esse complexo processo de autoconhecimento é a única dosagem disponível nesse emaranhado de drogas e estímulos em que somos obrigados a engolir em nosso confuso cotidiano. E não é à toa que fugimos dele: lidar com as próprias sombras é mais cruel do que lidar com os fracassos; porém, abre espaço para cada um entender as verdadeiras condições e procurar se adaptar a elas, uma atitude que gosto de chamar de aceitação.

Aceitar-se (um verbo mágico tão conhecido no mundo dos sobreviventes de AVC) vai muito além de se entregar à estagnação, mas entender quais são os reais desafios impostos aos nossos sonhos, e encará-los com coragem e sabedoria, sem desistir. Aliás, desconhecemos esse último verbo, riscamos ele do nosso vocabulário todos os dias. Coisas assim é algo que aprendemos, quase sem querer, em nossa jornada da reabilitação em que, apesar de tantas dores, nos dá um prazer único, que poucas pessoas nesse mundo têm oportunidade de vivenciar: o orgulho de ser herói da própria história. Sem comparações.

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