Moïse Kabamgabe nos mostra que o Congo é aqui

No Congo, 0,2% vacinaram contra Covid. Cada pessoa tem R$ 3 mil por ano. Mesmo assim, o Brasil foi mais cruel com Moïse do que o Congo

Um dos homens que participaram do espancamento e da morte de Moïse Kabamgabe no Rio de Janeiro gravou um vídeo. Diz que ninguém quis matar Moïse. E que ninguém bateu nele por ser preto. Pode ser.

Mas Moïse Kabamgabe morreu. E morreu por ser preto.

Escrevi acima “um dos homens que participaram do espancamento e da morte de Moïse Kabamgabe”. É como nós, da imprensa, falamos no caso de brancos que admitem ter assassinado alguém.

Seria mais fácil falar “assassino”. Talvez seja justo, ainda mais com a confissão. Mas nós, da imprensa, somos cuidadosos. Ainda mais quando se trata de um branco “envolvido com o espancamento e a morte” de um preto. Pode ser que ele não tenha dado o golpe derradeiro. Pode ser que com isso consiga não ser chamado de assassino. Pode ser que quem o chame de assassino seja culpado por isso mais tarde.

No Brasil, muita coisa pode acontecer. Principalmente se você for preto. Como era o caso de Moïse Kabamgabe.

Você pode morrer por dever R$ 200 a alguém. Ou pode morrer porque alguém te deve R$ 200. É estranho, mas pode acontecer, principalmente se você for preto.

Alisson, o homem que admitiu estar “envolvido na morte” de Moüse Kabamgabe, disse que viu uma briga entre o homem preto e um senhor do quiosque ao lado. E foi defender o senhor. Disse assim, como se não soubesse sequer o nome do senhor. Um homem que estava com um pedaço de pau, segundo as imagens. Moïse Kabamgabe não tinha um pedaço de pau. Mas era preto. Alisson, envolvido no espancamento e na morte do homem preto, foi proteger o branco que carregava um pedaço de pau.

Mas não foi racismo.

Moïse Kabamgabe veio para o Brasil fugido da guerra. Morava no Congo, um país em que os belgas, brancos, causaram um dos maiores morticínios da história moderna. E depois foram embora. O branco Joseph Conrad fez um de seus personagens dizer algo sobre isso. O horror.

No cinema, Marlon Brando diz isso sobre o Vietnã. Um país de não-brancos explorado por brancos até que acontece uma guerra.

O Congo é um dos países mais pobres do mundo. Ninguém liga. Só há pretos lá. Fossem nórdicos os habitantes do Congo, o mundo estaria mobilizado para tirá-los da miséria e da guerra.

O PIB da República Democrática do Congo é de 50 bilhões de dólares ao ano. Significa que todos os congoleses juntos ganham, num ano, um quarto da fortuna de Jeff Bezos.

No Congo, só 0,2% da população estão vacinados contra a Covid.

O PIB per capita no Congo é de R$ 3 mil por ano.

Jeff Bezos, estima-se, ganha 3 mil por segundo. Não reais, mas dólares.

Mesmo assim, Moïse Kabamgabe estava melhor no Congo do que no Brasil. Lá, apesar da pobreza, da guerra, do abandono da comunidade internacional, ele estava vivo.

No Brasil, não. No Brasil, ele foi cobrar R$ 200 por ter trabalhado num quiosque. Um homem pegou um pedaço de pau. Outros homens foram defender quem pegou o pedaço de pau. Dizem que não queriam matar o homem preto. Mas mataram.

A família de Moïse Kabamgabe pede justiça. Pode ser que consigam alguma prisão. Talvez uma indenização. Nunca mais terão Moïse porém.

E ainda que haja um vestígio de justiça nesse caso, continuaremos a ver a injustiça diária contra pretos. Contra pobres. Contra refugiados.

O Congo, eis o que nós ficamos sabendo por Moïse, o Congo é aqui.

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