Democracia brasileira: regredimos a uma condição infantil

Agressões à imprensa, impedimento da mesma desempenhar suas atividades, menosprezo da ciência, da própria condição humana, subestima da inteligência do cidadão e até mesmo a banalização da vida

Cala a boca! E daí? Não faço milagre! Vocês estão mentindo. As pessoas morrem mesmo!

Jair Bolsonaro, presidente do Brasil.

Quando a Constituição de 1988 estava prestes a ser promulgada, muita expectativa foi trazida ao povo, que havia vivido tamanho autoritarismo e truculência caracterizados pelo período militar brasileiro. O que se vislumbrava com a nova ordem constitucional era a oportunidade de se exercer uma série de liberdades, até então roubadas pela ditadura.

A principal lei do país trazia soluções para os problemas do passado e programas para um futuro, longínquo, esperava-se no momento. Liberdade de expressão, de imprensa, de manifestação do pensamento, liberdade de associação e de expressão cultural. Junto a elas, quase que inerente, estava cristalizado o perfil da figura de quem deveria conduzir o Estado para os próximos passos democráticos, em uma quase postura paterna, de um pai que entrega o seu filho aos desafios do mundo.

Foi com esse entendimento que o sociólogo italiano Domenico de Masi – um amante de nosso país – nos encarava, apontando em suas falas que o Brasil era um país capaz de exportar seu modelo de sociedade para o mundo. Esse foi o discurso de quem enxergava na sociedade brasileira peculiaridades positivas que se sobrepunham às dificuldades de um país em desenvolvimento.

Mas foram necessários 31 anos de democracia para o sociólogo mudar de ideia. Em entrevista ao  Instituto I.AM Democracia – dedicado a debater a democracia do país com grandes pensadores – o sociólogo demonstrou seu desencanto com a atual condição em que o Brasil se encontra. Para ele, esse é um período em que o Brasil regrediu a uma posição infantil e, ao encontrar-se em tal posição, abriu-se para um personagem forte a quem confiar toda nossa felicidade.

Talvez essa constatação justifique as primeiras palavras deste escrito. Agressões à imprensa, impedimento da mesma desempenhar suas atividades, menosprezo da ciência, da própria condição humana, subestima da inteligência do cidadão e até mesmo a banalização da vida. As expressões como “cala a boca” e “e daí?”  bem poderiam ser de uma trama de uma série adolescente ou até mesmo de um diálogo entre crianças, ou seja, de uma condição infantil, mas não são.

Fruto da onda de autoritarismo que ronda países do Ocidente, Domenico de Masi fala de um aumento da tristeza no mundo decorrente da recessão democrática. “Isso está acontecendo nos EUA com Trump, está acontecendo na Itália com Salvini. É uma onda de infantilidade que atinge um pouco todo o Ocidente. É como se todos os ocidentais tivessem perdido uns 15 anos. É como se fossem todos mais jovens, mais infantis do que eram há dez ou vinte anos”, avalia o sociólogo italiano.

O fato coincide com a recente divulgação dos dados da pesquisa do Instituto V-Dem, da Universidade de Gotemburgo, a qual rebaixou o status da democracia brasileira de liberal para eleitoral. A instituição, que possui um dos maiores bancos de dados sobre democracia no mundo, corrobora para o que jornalistas, acadêmicos e especialistas alertam insistentemente nos últimos anos: o Brasil enfrenta um período de recessão democrática e de um ferrenho crescimento do autoritarismo com ataques às instituições basilares de um Estado Democrático de Direito.  

Falar na regressão do regime democrático ao eleitoral carrega um infortúnio que a sociedade brasileira terá de encarar com muito empenho daqui para frente, uma vez que tal status indica a queda da participação, interesse e envolvimento popular nas causas do país.

Quando a Constituição de 1988 se apresentou, há quase 32 anos, um novo regime de governo se vislumbrava. Deduzia-se que a democracia ali  apresentada incluía a figura de um representante igualmente democrático.
Independentemente da desnecessária polarização entre direita e esquerda, o brasileiro vai precisar amadurecer diante dos impactos da crise sanitária, decorrentes do isolamento social do novo coronavírus e, especialmente, da crise econômica e política.

Quando um filho está prestes a completar 32 anos, espera-se que determinadas conversas sobre certos assuntos já estejam superadas. Mas o Brasil demonstrou – no último um ano e cinco meses – claramente que não. Vamos precisar retomar os debates típicos da infância. Ou entendemos, de vez por todas, quais são as bases de uma sociedade democrática para, então, cobrarmos e nos posicionarmos sobre seu aprimoramento, ou essa criança caminhará em corda bamba, com sérios riscos de tropeçar, bambear e cair. Caso isso aconteça, a tristeza e o desânimo que menciona Domenico de Masi irão assolar ainda mais o país. Nesse contexto, uma nova criança, carregada de um caráter ainda mais autoritário, com supressão de direitos, poderá nascer: traumatizada e reprimida, em que o medo e a intolerância serão a nova normalidade.

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