Quase 30 anos pra te perdoar, Chico

Liége Fuentes relembra o dia que tentou entrevistar o cantor

Quando olhaste bem nos olhos meus. E o teu olhar era de adeus. Juro que não acreditei, eu te estranhei… Me arrastei, me debrucei, chorei e reclamei baixinho atrás da porta…

Guardadas as devidas adaptações, este é um trecho da música “Atrás da Porta”. Recorro a ela como trilha perfeita do meu primeiro, único e intransferível encontro com o autor desta memorável letra: o não menos icônico Chico Buarque de Hollanda.

Começo dos anos 1990, como repórter da Folha de S.Paulo, em Curitiba, estava à frente de toda e qualquer pauta capaz de abarcar o universo humano. Da cobertura de jogos de futebol, às matérias de economia, política, polícia, campanhas eleitorais, descobertas científicas, acidentes fatais… enfim, uma verdadeira clínica geral, na fascinante lida diária de todo repórter com paixão pelo que faz.

Escalada para entrevistar Chico Buarque, antes dos ensaios de um show que estrearia no Teatro Guaíra, com caderno e caneta em mãos e coração na boca, fui tentando vencer o desafio de estar pela primeira vez frente a frente – ou seria “Olhos nos Olhos” ?! – com um dos maiores ídolos da MPB. Ele, também, meu ídolo incondicional por tamanha destreza com as palavras e seus significados.

Me antecipei e cheguei ao local da entrevista coletiva, no teatro, antes de todos os colegas. Assim que vi Chico no corredor, me aproximei firme, altiva, séria e sem gaguejos, disse: Olá Chico, sou repórter da Folha de S.Paulo e gostaria de uma entrevista para a Ilustrada (caderno de cultura do jornal). Poderia me conceder?

Apresentação feita, primeiro passo dado. Então paro de falar, respiro e aguardo o mito dizer, “sim, vamos conversar”…. Silêncio de segundos, Chico me olha – sim, nos olhos – e diz: “De novo? Seu editor não te orientou? Eu não dou entrevistas para a Folha de S.Paulo. Nada contra você, que está fazendo seu trabalho, mas assim só me indisponho com os repórteres desse jornal… Há um ano não dou entrevistas para a Folha de S.Paulo.” E ponto, a repórter morreu ali, sem voz, atônita.

Cenas seguintes: repórteres chegam, são encaminhados para o local da entrevista, Chico é levado até a sala da coletiva, assessora do ícone à frente da porta faz triagem e a recomendação é expressa: repórter da Folha não entra, sem permissão de acesso. E ponto: sigo atônita, sem voz.

Então… me arrastei, me debrucei e chorei baixinho nos degraus da primeira escada que achei pra me apoiar. Valha-me Deus que todas as forças da profissão não foram capazes de evitar o que se passou ali: morria a repórter e só sobrava a fã afogada em lágrimas naquele lugar!

Sem pauta, sem matéria, de volta à redação, informo o editor e ele diz: “ok, tentamos”. A frustrada aqui, em pessoa, nunca mais olhou e ouviu o dono daqueles olhos cor de ardósia como antes… “Dei pra maldizer, sujar teu nome, te humilhar e me vingar a qualquer preço…” Sim, nunca mais comprei um lançamento sequer seu. Quase 30 anos depois, e ainda te adorando pelo avesso, digo: tá perdoado, Chico!

É vida que segue pra quem tem lembranças únicas pra contar. Mais alguém aí na fila do perdão?

Obs: A memória emocionalmente abatida daquele dia não me deixa recordar com total segurança, mas o imbróglio Chico x Folha, na época, se devia a críticas do editor de Ilustrada à produção literária do ‘nosso’ multiartista.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

O (des)encontro com Têmis

Têmis gostaria de ir ao encontro de Maria, uma jovem vítima de violência doméstica, mas o Brasil foi o grande responsável pelo desencontro

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima