Um genocídio não se improvisa

Todos nós sabemos quem são os responsáveis pelo genocídio e, igualmente, quais são os interesses escusos e perversos acionados para justificar a política de morte de Bolsonaro e seus cúmplices

As imagens e notícias sobre centenas de Yanomamis, incluindo bebês, crianças e idosos, desnutridos, condenados à morte pelo abandono das autoridades e vítimas de violências perpetradas à sombra, quando não com a conivência, de instituições que deveriam garantir sua segurança, correram o mundo na última semana.

Os corpos famélicos fazem lembrar as muitas tragédias que atravessaram o século 20 e cuja memória alcança o nosso ainda jovem século 21. Em sua conta no Twitter, o Instituto Brasil-Israel escreveu: “Sim, estamos fazendo comparações com campos de concentração. Devemos usar o Holocausto como um exemplo que jamais deve ser seguido. Infelizmente, parece que parte do mundo não
aprendeu o verdadeiro significado de ‘nunca mais’”.

Não é exagero, nem traição à semântica. A catástrofe humanitária dos Yanomamis e dos demais povos indígenas, deve ser chamada pelo que é: genocídio. E um genocídio não se improvisa.

Desde o início do governo Bolsonaro, e de maneira mais enfática nos últimos dois anos, órgãos de imprensa independente, como o Amazônia Real e a Agência Pública, denunciam a violência que se abateu sobre as comunidades indígenas na Amazônia.

Em seu relatório “As veias abertas”, publicado em setembro do ano passado, a associação De Olhos nos Ruralistas fez um balanço assustador desse último quadriênio. Durante a gestão Bolsonaro, o garimpo de ouro e estanho em terras Munduruku, no Pará, aumentou 334%. Nos territórios Yanomami no Amazonas e em Roraima, o aumento foi de 328,6%.

Ao longo do mandato, o agora felizmente ex-presidente publicou oito decretos que beneficiavam pequenas e médias mineradoras e facilitavam a grilagem de terras e o garimpo ilegal.

A peça-chave da política de destruição e morte de indígenas, no entanto, era o PL 191/2020, cuja intenção era liberar, definitivamente, a mineração em terras indígenas. Apesar de ter sua urgência aprovada pela mesa diretora da Câmara a pedido do governo, em março do ano passado, o PL estagnou depois de forte pressão das comunidades indígenas e entidades ambientalistas.

São muitas as responsabilidades e muitos os responsáveis pelo genocídio em curso. As forças armadas; o general e ex-vice-presidente Hamilton Mourão, senador eleito pelo Rio Grande do Sul; o ex-juiz, ex-ministro da Justiça e senador eleito pelo Paraná, Sérgio Moro; a ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pastora e senadora eleita pelo DF, Damares Alves; o ex-ministro do Meio Ambiente e deputado federal eleito, Ricardo Salles, que defendeu aproveitar a pandemia para “passar a boiada” e mudar o regramento ambiental; a Polícia Federal; os dirigentes do Ibama; os oficiais do Exército que tomaram de assalto a Funai; a bancada ruralista no Congresso Nacional.

Desde novembro de 2020 a Hutukara Associação Yanomami enviou 21 ofícios a diferentes órgãos oficiais – Ministério Público, Funai e o Exército –, em que alertava sobre os “conflitos sangrentos que no limite podem atingir a proporção de genocídio”. Todos foram solenemente ignorados, como revelou, recentemente, o The Intercept Brasil.

Política de morte

Como no famoso PowerPoint do ex-procurador, pastor e deputado federal eleito pelo Paraná, o bolsonarista Deltan Dallagnol, todas as flechas apontam para o centro. E no centro está Jair Bolsonaro.

Herdeiro direto do autoritarismo civil-militar, Bolsonaro deu continuidade, também nisso, à ditadura que ele costuma celebrar. De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, entre 1946 e 1988 ao menos 8.350 indígenas foram mortos. Mais da metade, durante os 20 anos da última ditadura.

Apenas entre os Waimiri-Atroari, do Amazonas, cerca de dois mil indígenas foram assassinados ou “desaparecidos”, entre os anos de 1972 e 1975, porque resistiam à construção da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, e parte do Plano de Integração Nacional encampado pela ditadura. Já a abertura da rodovia Transamazônica, no mesmo período, afetou 29 grupos da região, entre eles 11 etnias que viviam, até então, em completo isolamento.

Além das práticas de assassinato e desaparecimento, indígenas foram mortos em conflitos com o exército e de fome, torturados, presos em campos de concentração, removidos à força de suas terras ou inoculados, propositadamente, por epidemias. Em 1974, mais de 30 membros do povo Kinja morreram depois que aviões lançaram veneno sobre a aldeia Kramna Mudî, em Roraima.

Quando prometeu, ainda em campanha, não demarcar nem um centímetro de terra indígena e “dar uma foiçada” no pescoço da Funai, Bolsonaro deixava claro que, se eleito, transformaria a política em um genocídio continuado por outros meios, como afirmei em coluna de maio do último ano, no Plural, ao comentar o estupro e o assassinato de uma adolescente Yanomami em Roraima.

Cumpriu a promessa. Durante quatro anos, o governo, além de estimular a ação de garimpeiros, grileiros, madeireiros e mercadores de armas, muitos deles com associação ao tráfico de drogas, desmontou órgãos de controle ou os aparelhou, mobilizou a Funai para perseguir lideranças indígenas, e entregou a Amazônia ao crime organizado.

Os resultados estão aí, pra quem quiser ver.

A cooptação, paga em pequenas gramas de ouro, principalmente de homens indígenas, sujeitados ao trabalho semiescravo; inúmeras denúncias de estupro; a prostituição de crianças e adolescentes, cujos corpos se transformam em mercadoria barata; ameaças e ataques à aldeias; a proliferação de doenças e a sobrecarga do sistema público de saúde. E assassinatos, três deles, pelo menos, amplamente noticiados: além da adolescente Yanomami, o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista e servidor da Funai, Bruno Pereira, perderam a vida, vitimados pela sanha criminosa de grileiros, garimpeiros e madeireiros e seus cúmplices nos gabinetes de Brasília.

Em tese, não é difícil apurar as responsabilidades. Todos sabemos quem são os responsáveis pelo genocídio e, igualmente, quais são os interesses escusos e perversos acionados para justificar a política brutalista – quando o assassinato deixa de ser uma exceção e são normalizadas e naturalizadas situações extremas como o extermínio – patrocinada pelo governo de Bolsonaro e seus cúmplices.

Tampouco é inteiramente novidade a extensão da destruição e da violência. Muitos de nós sabíamos, em alguma medida, que estava em curso o genocídio da população indígena. Mas agora o vimos, e somos testemunhas dele. Cabe a nós, também, não sermos seus cúmplices.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima