Sem medo de ser feliz, nem de lembrar

Se não compete exclusivamente ao governo a tarefa de lembrar, é dele a responsabilidade por fomentar e incentivar iniciativas de preservação da memória histórica sobre os períodos autoritários

“Os assassinos estão livres, nós não estamos”.
Renato Russo

Milhares de argentinos foram às ruas em 24 de março, quando se completaram 48 anos do golpe que instaurou a última ditadura militar no país vizinho. O ato gigantesco, um dos maiores dos últimos anos, foi também um gesto de repúdio ao governo do presidente Javier Milei e sua vice-presidente, Victoria Vilarruel.

Em uma versão peculiar do revisionismo histórico que conhecemos muito bem, ambos negam que sejam 30 mil os mortos e desaparecidos durante os anos de autoritarismo. Em uma entrevista no dia 22, Vilarruel usou o termo “festejar” para se referir às manifestações, ironizando o que chamou de “caráter fúnebre” dos atos que, todos os anos, acontecem em diferentes cidades do país.

E em gesto extremo de provocação, a Casa Rosada divulgou, no mesmo dia das manifestações, em sua conta no YouTube, o vídeo “Día de la Memoria por la Verdad y la Justicia. Completa”. Em uma estética muito parecida com os pseudodocumentários da igualmente revisionista “Brasil Paralelo”, a peça recorre à falácia dos “dois demônios” para justificar a brutal repressão militar – a nação, afinal, estava em uma “guerra”.

A explicação para o número inflacionado de vítimas não poderia ser mais cínica e cruel: interesses econômicos da esquerda, dos sobreviventes e dos familiares dos mortos e desaparecidos, incluindo as Madres y Abuelas da Plaza de Mayo que, inclusive, já foram objeto do escárnio de Milei.

Menos de uma semana depois, éramos nós que relembrávamos, ou devíamos relembrar, os 60 anos do golpe que, em 31 de março de 1964, mergulhou o Brasil em duas décadas de uma ditadura autoritária, criminosa e corrupta. Mas, diferente da Argentina, não ocupamos às ruas, aos milhares, exigindo verdade e justiça. Nem o Palácio do Planalto fez publicar um vídeo infame em seus canais oficiais, felizmente.

Por aqui, nosso governo progressista de centro-esquerda preferiu uma versão mais light do revisionismo: depois de ter dito que 1964 é história e não quer remoer o passado, Lula vetou os atos críticos preparados por alguns de seus ministérios, especialmente o de Direitos Humanos liderado por Silvio Almeida, em alusão à efeméride.

A justificativa: não é hora de melindrar os militares, especialmente depois que se confirmou o óbvio, de que parte da caserna participou da arquitetura da tentativa de golpe de pouco mais de um ano atrás. É a versão governista mais recente de criar os corvos e esperar que eles lhes comam os olhos.

Democracia e cultura democrática

Muito já se falou sobre as estruturas frágeis sobre as quais, após o fim da ditadura civil militar, se construiu nossa democracia. Na abertura de “Imobilismo em movimento”, o filósofo Marcos Nobre chama a atenção para o fato de que à consolidação da democracia, em seus aspectos formais, não corresponde, necessariamente, “uma vida política substantivamente democratizada”.

A democracia, prossegue, “não é apenas funcionamento de instituições políticas formais, não é apenas um sistema político regido formalmente por regras democráticas. Democracia é uma forma de vida que se cristaliza em uma cultura política pluralista, organizando o próprio cotidiano das relações entre as pessoas”. E é difícil sustentar que já atingimos isso, mesmo passados mais de 40 anos da redemocratização.

Essa incompletude, em parte, se deve ao fato de que o processo de transição e a construção da chamada “Nova República” foram insuficientes para superar as inúmeras experiências de repressão sistemática a movimentos sociais e populares, o terror de Estado e as muitas práticas de marginalização de parcelas significativas da população. Fenômenos, em larga medida, responsáveis por moldar nossa experiência histórica e política.

Um dos resultados diretos desse processo, que não se deve exclusivamente à ditadura, importante que se diga, foi uma espécie de embotamento de nossa sensibilidade democrática, traduzida, grosso modo, em uma alta tolerância, quando não mera insensibilidade, à violência policial, a tortura e as muitas formas de preconceito – de classe, racial e de gênero – para ficarmos apenas nos exemplos mais transparentes.

Além, claro, das constantes ameaças à democracia, de que o governo do miliciano e a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 são os casos mais recentes.

Os petistas de meu círculo social não gostam quando digo isso, mas não são poucas as facetas dos governos do PT que corroboram para esse estado de coisas. Tanto Lula como Dilma – e é preciso reconhecer, mais Lula que Dilma – aceitaram manter praticamente intocadas as estruturas políticas herdadas da ditadura. Não é que os governos petistas tenham tentado e fracassado: eles nem ao menos tentaram.

Um passado ainda presente

Como lembrou o historiador Murilo Cleto em artigo na Folha, ao não “remoer o passado”, é o passado que vai remoendo o presente. A ausência de políticas efetivas de memória, não resultaram apenas na quase inexistência, entre nós, de lugares e instituições dedicadas aquilo que Adorno chamou, se referindo ao Holocausto, de “lembrança ativa” – museus, por exemplo, como os existentes na Argentina, no Chile e no Uruguai.

Quando falamos de um “passado que não passa”, tampouco nos referimos somente à presença, por assim dizer, mais ostensiva e truculenta desse passado. Coisas como a violência policial, notadamente contra a população mais frágil e vulnerável, que mencionei há pouco, ou nossa brutal desigualdade social e econômica, são parte dessa presença, mas não a esgotam.

Se não compete exclusivamente ao governo a tarefa de lembrar, é inegável, por outro lado, que é dele a responsabilidade por fomentar e incentivar “iniciativas de preservação da memória histórica e de construção pública da verdade sobre períodos autoritários”, como estabelecido no 3º Plano Nacional dos Direitos Humanos, o PNDH-3, aprovado em 2009, na segunda gestão de Lula.

E se Lula 2 pelo menos acenava, em um gesto de boa vontade, para o enfrentamento da ditadura, Lula 3 escolheu o caminho da omissão.

Passados mais de um ano do início do governo, o presidente ainda não encontrou espaço na agenda para receber aquelas e aqueles que seguem buscando os restos de seus familiares. Tampouco deu sinais de recriar a Comissão de Mortos e Desaparecidos, extinta no apagar das luzes da gestão do genocida. O anunciado Museu da Memória e dos Direitos Humanos é, até agora, apenas isso: um anúncio.

Essa letargia, simbólica e prática, exerce papel fundamental no modo como lidamos com o que restou da ditadura. Da afirmação, comum, de que “morreu (ou foi preso, torturado, exilado, tanto faz) quem merecia”, à pura e simples negação, a propalada hegemonia de uma perspectiva crítica nunca ultrapassou os limites da academia.

A historiografia acadêmica e profissional é, de fato, hegemonicamente crítica à ditadura, e não poderia ser diferente. A memória nacional, por outro lado, está longe, muito longe dessa hegemonia.

Que cerca de 70% dos brasileiros apoiem a democracia, considerando-a um regime preferível à uma ditadura, tampouco nos tranquiliza. Um dos resultados do esquecimento e da indiferença foi, justamente, a normalização de uma democracia débil, limitada à sua dimensão institucional e frequentemente à mercê de golpes e, mais recentemente, do espectro do fascismo.

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