O silêncio de Lula é expressão de um pragmatismo eleitoral perigoso

O pragmatismo político de Lula e do PT os afastaram das ruas e reforçam a aposta em uma via eleitoral que não pode oferecer mais que uma política de alianças e de conciliação, repetindo, em um contexto menos favorável, o que já vimos em 2002

Principal líder da esquerda brasileira, e favorito nas pesquisas pré-eleitorais para a sucessão de Bolsonaro, Lula fez a escolha pelo silêncio no domingo, quando milhares de pessoas assumiram o risco de ir às ruas, nas primeiras grandes manifestações contra o governo Bolsonaro desde o início da pandemia. Um silêncio rapidamente justificado pelos militantes lulistas nas redes sociais, mas nem por isso menos incômodo.

Duplamente incômodo, aliás. Primeiro, porque reforça a sensação de que o projeto político de Lula, cada vez mais, depende cada vez menos do PT, tornado mera plataforma institucional para viabilizar suas pretensões políticas. Se ninguém, nem seus desafetos, negam o carisma do ex-presidente, usá-lo como pretexto para o recrudescimento de uma liderança personalista, não me parece uma opção saudável.

Mas o que me incomoda ainda mais nesse silêncio, é que seu cálculo político arriscado e perigoso. Sabemos que o pragmatismo eleitoral petista vem de longe – desde, pelo menos, a “Carta aos brasileiros”, de 2002. Mas a cada eleição seus resultados são mais frágeis e temerários.

Em 2014, foi a aposta em um segundo turno com Aécio Neves, que direcionou a máquina comandada por João Santana, recém-convertido à candidatura de Ciro Gomes, contra Marina Silva, então favorita para disputar o pleito com Dilma Rousseff. O PT e Lula tampouco se mobilizaram pelo “Fora Temer”, preferindo apostar no desgaste do governo, no discurso do golpe e na perseguição judiciária contra Lula pela Lava Jato do futuro ministro Sérgio Moro, como uma estratégia para voltar ao governo.

Não deu certo. O “segundo turno ideal”, nas proféticas palavras do jornalista Breno Altman, terminou com a eleição de Bolsonaro e um governo que, não bastasse todo o resto, encontrou na pandemia a oportunidade para uma política genocida que já nos custou quase 500 mil vidas, como escrevi aqui há algumas semanas.

A aposta no desgaste de Bolsonaro

Jair Bolsonaro. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil.

Motivos para o impeachment de Bolsonaro não faltam. Mas o impedimento não cabe nos cálculos políticos de Lula e do PT, que preferem o desgaste do governo até as eleições de 2022, mesmo que isso nos custe ainda um punhado de vidas ou mesmo uma eventual reeleição do tiranete de plantão – e, com ela, o que ainda sobrou dessa terra devastada e desolada como em um poema de Eliot.

O silêncio sobre as manifestações de domingo são parte dessa estratégia que deixa ainda mais evidente o quanto o pragmatismo lulista passa por distanciá-lo, e ao PT, das ruas, sempre que o que vem das ruas de algum modo contradiz seus cálculos eleitorais. Foi assim com as manifestações de 2013, ainda hoje para a militância petista, e para o próprio Lula, urdida para dar início ao proclamado golpe de 2016.

E isso apesar de todas as evidências contrárias.

Foi assim também com as manifestações de 2014. Naquele ano, o governo de Dilma Rousseff reprimiu duramente manifestantes que denunciavam o legado violento da Copa: operários mortos na execução de obras, conduzidas com pressa irresponsável; a ação repressiva e higienizadora da polícia e do exército; os milhares de cidadãos brasileiros removidos à força para dar lugar aos novos estádios, etc.

E não custa lembrar que ambas as manifestações, mas especialmente o “Não vai ter Copa”, serviram de pretexto para a Lei Antiterrorismo, sancionada pela mesma Dilma Rousseff dois anos depois, e aposta de Bolsonaro para que, revisada e endurecida, ela sirva para reprimir movimentos sociais e manifestações país afora.

Ruas esvaziadas e conciliação

Dilma Rousseff. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

Há uma coisa mais a dizer sobre isso. A aposta na via eleitoral serve não apenas para explicar e justificar o silêncio de Lula sobre as manifestações de domingo. Mas também para tentar convencer todo o campo progressista e os eleitores, de que ela é, primeiro, a única via possível e, segundo, ela só é possível se todo o campo progressista orbitar em torno da candidatura de Lula.

O problema é que tanto os governos quanto as candidaturas petistas já mostraram que são profundamente desmobilizadoras e despolitizantes. E são assim porque, em larga medida, suas chances eleitorais e, em uma eventual vitória, suas possibilidades de conduzir um governo, dependem basicamente disso.

Dito de outro modo, o que Lula e o PT têm a oferecer hoje, mais até do que em 2002, é uma política de alianças e de conciliação cuja viabilidade depende de uma sociedade desmobilizada e despolitizada, das ruas esvaziadas, e de eleitores satisfeitos com a condição de consumidores, mais do que de cidadãos politicamente ativos e participantes.

Sim, sei e concordo que, frente ao atual governo genocida, isso soa como a visão do paraíso. Mas é pouco frente à urgência que temos de tonificar nossa democracia para além do embate eleitoral, ele próprio esvaziado de seu sentido político e transformado em espetáculo midiático, um Big Brother sem a alegria vigorosa de um Gil e a simpatia de Juliette para compensar o mau gosto.

E precisamos disso urgentemente, inclusive para termos o mínimo de garantia contra a truculência, não apenas verbal ou simbólica, do bolsonarismo, já anunciada, e que deverá recrudescer quando começar efetivamente o processo eleitoral em 2022. Ao dar as costas, mais uma vez, às ruas, Lula e o PT podem estar cometendo um erro estratégico e fatal, mesmo para seus um tanto otimistas cálculos eleitorais. Porque a democracia, e estamos a aprender isso amargamente, não depende e nem sobrevive apenas das urnas.


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