No Brasil, vidas negras não importam

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A morte de Marielle Franco e as intimidações a vereadoras negras são faces visíveis do racismo brasileiro

Na mesma semana em que se passaram mil dias desde o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, a curitibana Carol Dartora, é ameaçada de morte. Como lembrou aqui no Plural a jornalista Angieli Marlos, coincidentemente a intimidação ocorreu no dia seguinte ao prefeito Rafael Greca negar, em entrevista à GloboNews, a existência de racismo estrutural em Curitiba.

Eleita pelo PSol em 2016, Marielle Franco foi assassinada, junto com seu motorista Anderson Gomes, na noite de 14 de março de 2018. Sua morte, encomendada pela milícia carioca, tem claros contornos raciais e de gênero: ela não era a primeira nem a única liderança política do Rio de Janeiro a enfrentar o poder criminoso das milícias.

Mas só ela morreu, bárbara e violentamente executada. Na lógica das milícias – que, não por acaso, é a mesma do Estado e do atual governo –, a vida de uma mulher negra vale menos, e por isso é mais facilmente descartável, que a de homens brancos.

A vereadora Carol Dartora recebeu ameaças de morte. Crédito da foto: Carlos Costa/CMC

À época outros milicianos, os que atuam nas redes, não podendo matá-la fisicamente, trataram de assassiná-la não apenas uma segunda, mas repetidas vezes, acusando-a, entre outras coisas, de manter ligações com facções criminosas. Porque para esses grupos, não há outra explicação à ascensão social e política de uma mulher negra e da periferia, que não sua associação ao crime.

Os mesmos impropérios, mas agora ainda mais pesados que há dois anos, voltaram a circular nessa semana, nas caixas de comentários de sites de notícias e nas páginas das redes sociais. Passados mil dias sem que saibamos ainda quem mandou matar Marielle e porque sua memória e legado seguem sendo um incômodo.

Não por acaso mulheres que são, de algum modo e mesmo involuntariamente, suas “herdeiras políticas”, sofrem as ameaças e sentem a violência daqueles que a mataram, física e simbolicamente. No Rio de Janeiro, a deputada federal Talíria Petrone, também do PSol, foi obrigada a deixar seu estado e vive sob escolta.

Primeira mulher negra eleita para a Câmara de Vereadores da capital paranaense, Carol Dartora, do PT, vem sofrendo ataques de cunho racista desde que seu nome foi confirmado como a terceira candidata mais votada nas eleições deste ano.

Pelos comentários públicos postados no site e na página de um ex-jornal curitibano, é possível ter uma ideia do tipo de mensagem que ela, militante do movimento negro e feminista, recebe privadamente: “Se for ficar nessa choradeira, sinta-se convidada para ir embora!”; “Feminismo e movimento negro é oq importa para os demagogos do Pt”; “Fico feliz que ela sabe qual o gênero dela, que não é daltônica e que sabe o nome da cidade onde nasceu, ta de parabéns”.

E um dos mais significativos: “Por favor ninguém merece mais uma Mariele (sic)”. O comentário, óbvio, não era uma demonstração de solidariedade.

Racismo como regra

A morte de Marielle e as intimidações à Carol e outras vereadoras negras, figuras públicas, são uma das faces mais visíveis do racismo brasileiro. Mas não o único. Nosso racismo, na acepção do advogado e filósofo Silvio Almeida, é estrutural, parte constituinte de relações sociais mais amplas, afetando comportamentos individuais, políticas públicas, relações econômicas e processos institucionais.

No Brasil, o “racismo é regra e não exceção”. Uma regra que tem contornos muito bem definidos.

O rendimento médio de trabalhadores brancos, ano passado, foi de aproximadamente R$ 3 mil, contra R$ 1,6 mil de negros. O 13.º Anuário da Violência, também de 2019 mas que reúne dados do ano anterior, aponta que 75,4% das vítimas de letalidade policial eram pretas ou pardas. A chance de um jovem negro morrer vítima de homicídio, é quase três vezes maior que a de um jovem branco. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, negros correspondem a cerca de 65% da gigantesca população carcerária brasileira.

Negros correspondem a cerca de 65% da população carcerária brasileira.

Ao pensar a produção do que chamou de “vidas precárias”, a filósofa Judith Butler afirma que, além da dimensão biológica, para ser reconhecida uma vida precisa se conformar a certas concepções, a um conjunto de normas social e politicamente produzidas. A isso ela denominou “enquadramento”, responsável por distinguir aquelas vidas que podemos apreciar e valorizar, daquelas que não merecem ser consideradas, e cuja eliminação merece a indiferença.

Essa condição precária é politicamente induzida e, no caso brasileiro, por uma soma de políticas que distribuem desigualmente a vulnerabilidade e a violência, principalmente estatal. E não se trata de “vidas nuas”, conceito amplamente conhecido a partir da obra de outro filósofo, o italiano Giorgio Agamben. Diferente do homo sacer, nossas vidas precárias, majoritariamente negras, não estão fora, mas dentro dos limites muito bem demarcados da polis.

Além disso, nunca confrontamos efetivamente nosso passado escravista, nem a maneira perversa com que o Estado monárquico conduziu a abolição, marcada pela completa ausência de políticas que integrassem a população negra à cidadania. Um passado que não passa, a presença da escravidão nos ajuda a entender a política como um trabalho de morte, característica do Estado brasileiro e sua relação com a população negra.

Nos últimos anos, impulsionados pelos ventos democráticos que nos arejaram, chegamos a vislumbrar, ainda que timidamente, algumas mudanças, em larga medida graças à mobilização e as demandas do movimento negro que repercutiram, algumas delas, na efetivação de políticas públicas compensatórias e inclusivas, como as cotas raciais de acesso à universidade, por exemplo.

Para Bolsonaro, quilombolas são “vagabundos” que pesam “sete arrobas” e não servem “nem pra procriador”. Crédito da foto: Agência Câmara.

Também no campo institucional, essa movimentação produziu bons frutos, de que são exemplos a própria Marielle Franco, as candidaturas coletivas lançadas em 2018 e nesse ano, e a eleição da primeira mulher negra para a mais antiga instituição pública de Curitiba, a Câmara de Vereadores. Mas mesmo esses avanços estão ameaçados em um governo cuja atitude estimula, autoriza, legitima e amplia a força e o alcance do racismo – e não me parece coincidência que manifestações como as ameaças a Carol Dartora estejam cada vez mais visíveis e constantes.

Em um país onde o responsável pela Fundação Palmares nega a memória de lideranças, artistas e intelectuais negros, e o presidente se refere a quilombolas como “vagabundos” que pesam “sete arrobas” e não servem “nem pra procriador”, qualquer um se sente autorizado, seja a ameaçar uma mulher negra, ou justificar, sob qualquer pretexto torpe, que um homem negro seja espancado até a morte no estacionamento de um supermercado.

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