Janela para os estudantes, horizonte para os arquitetos

Não é preciso ir muito longe para imaginar os conhecidos impactos que a falta de luz natural pode provocar nos alunos

Imagino que quase todo arquiteto ou urbanista guarde alguma recordação de viver como estudante em uma moradia ou uma república; ou uma noite virada entre projetos e o sofá de um amigo. A vida estudantil é rica em experiências, formadoras inclusive do nosso caráter e subsidiam nossos projetos de um dormitório ou de uma moradia – a relação entre o espaço mínimo e ao mesmo tempo digno.

A Universidade da Califórnia em Santa Bárbara (EUA) surpreendeu a comunidade de estudantes e arquitetos ao fazer o lançamento de uma nova moradia estudantil – a maior do mundo. The Murger Residence Hall abrigará 4.536 estudantes. Ao custo de US$ 1,5 bilhão, o projeto é parcialmente financiado pelo bilionário Charles Munger.

Tudo ia bem. A proposta pretende resolver um problema crônico: a demanda por dormitórios pelos estudantes é grande, não somente nessa universidade, mas em todo a Califórnia. No estado, onde o metro quadrado atinge valores absurdos, é comum o relato de estudantes que vivem em seus próprios carros abrigados em estacionamentos públicos, ou que contam com o solidário sofá de um amigo para poderem seguir seus estudos. Nada que nossa realidade brasileira já não conheça, mas que choca quando vinda de um dos estados mais ricos dos EUA.

No entanto, o sinal de alerta foi ligado, no final de outubro o arquiteto Dennis McFadden, do comitê da universidade, pediu demissão de seu posto, contrariado com o projeto. O edifício de 11 andares e mais de 156 mil metros quadrados contará com 94% dos seus dormitórios sem uma única janela. O arquiteto alegou em sua carta de renúncia que o edifício “é um experimento social e psicológico com impacto desconhecido na vida e no desenvolvimento pessoal dos alunos”.

Não é preciso ir muito longe para imaginar os conhecidos impactos que a falta de luz natural pode provocar nos alunos. Não é só. Os onze andares do edifício, adensados em uma projeção de solo de 14 mil metros quadrados, vão gerar uma densidade um pouco maior do que 3 m² por estudante. Mesmo bairros mais adensados do Brasil, como a Rocinha ou Copacabana, passam longe disso. É como colocar toda a população do estado do Paraná para morar nos limites do bairro Cidade Industrial de Curitiba.

Em sua defesa, o comitê da universidade alegae que as janelas virtuais dos dormitórios irão reproduzir a luz e temperatura do ciclo circadiano. O ar fresco injetado nos dormitórios será liberado diretamente para a atmosfera sem passar por outros dormitórios, conforme as exigências de cuidados com a Covid, por exemplo.

Planta do pavimento tipo do The Murger Residence Hall. fonte: UCSB.

O fato é que essa “máquina de morar” ainda vai gerar muito debate. Se concluída, espero que não tenha o fim de outro conjunto icônico americano. As torres do complexo habitacional de Pruitt-Igoe, construídas em Saint Louis entre 1954-55, foram demolidas em 1972. Desse legado, ficaram as críticas ao projeto moderno e ao seu autor, o arquiteto Minoru Yamasaki. Ironicamente, o conjunto possuía amplas janelas nos apartamentos, áreas verdes e espaços livres para seus moradores. A injusta condenação do projeto e seu autor, mascarou o fracasso das políticas de habitação pública em um período recessivo da cidade e do país.

O arquiteto Le Corbuiser muitas vezes é associado à “máquina de morar”. Mas a moradia estudantil que projetou em parceria com Lucio Costa, para os alunos e pesquisadores brasileiros em Paris – a Maison du Brésil de 1952, é um magnífico exemplar da arquitetura moderna. O uso do concreto armado aparente, da policromia nas varandas dos dormitórios bem iluminados, e o mobiliário desenhado por Charlotte Perriand e Jean Prouvé, conferem a essa moradia estudantil o título de patrimônio arquitetônico francês.

No Brasil, onde a educação e a habitação social ainda não são prioridade, encontramos muitos exemplares de moradias estudantis bem sucedidas, mostrando os caminhos para abraçarmos essas prioridades. Segundo Adalberto José Vilela Júnior, temos mais de 115 alojamentos para estudantes no país. Antônio Candido relata que em meados do século 19, os estudantes já se organizavam pela moradia, “três ou quatro rapazes reúnem-se, pactuam e vão viver na mesma casa, fazendo em comum as despesas do alimento, do aluguel, etc. Eis a República proclamada”. Ainda hoje, em Ouro Preto (MG), a universidade oferece antigos casarões para as repúblicas de seus alunos.

ilustração de Letícia Serrano (estudante de arquitetura da UEL.

No século 20, moradias estudantis passaram a contar com projeto de arquitetos modernos. Na década de 1960, na UnB, João Filgueiras Lima – o Lelé projetou diversos blocos usando na época uma inédita tecnologia de pré-moldados. Os blocos nomeados de Colina foram ocupados pelos professores, que no início da Capital Federal, disputavam as poucas moradias com os estudantes. Vilela Júnior explica que somente em 1972 os estudantes foram ter sua moradia na UnB. Com projeto inicial de Léo Bonfim Júnior, Alberto Fernando Xavier e Solon de Souza, 544 estudantes passaram a contar com apartamentos duplex – seis moradores por unidade, e vista para o lago Paranoá.

Na Unicamp, em 1992, foi inaugurada uma grande experiência em habitação estudantil, no bairro de Barão Geraldo, em Campinas (SP). A inédita tecnologia de alvenaria cerâmica armada, projetada e desenvolvida pelo arquiteto catalão Joan Villá em meados de 1980, permitiu a construção de 300 apartamentos para estudantes, abrigando cerca de 900 residentes. Sua implantação labiríntica conforma pátios internos ajardinados e um sentido de comunidade únicos.

O maior e mais emblemático projeto de moradia estudantil no Brasil é o Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo, o CRUSP. O edifício foi projetado em 1961 pelos arquitetos Eduardo Kneese de Mello, Joel Ramalho Júnior e Sidney de Oliveira. Se fosse implantado na sua totalidade, abrigaria 2.160 alunos em 720 apartamentos. O projeto previa térreo livre, ventilação cruzada nos apartamentos, além de terraços para os dormitórios. Entre intenção e realidade, o projeto do conjunto passou por muitas modificações e acontecimentos. Quando concluído, abrigou atletas nos jogos Panamericanos de 1963 (o tão falado legado de eventos esportivos). Em dezembro de 1968, teve todos os seus estudantes expulsos pelo Exército. Em 1979, os estudantes voltaram a ocupar os alojamentos, e geriram o edifício sem recursos para sua manutenção, até que em 1984 a universidade voltou a administrar o conjunto com cerca de 750 alunos. Ainda hoje comunidade e universidade tentam recuperar seu legado arquitetônico original.

Na Universidade Estadual de Londrina – UEL, 82 estudantes estão abrigados na moradia estudantil. Com projeto dos arquitetos Eduardo Hideo Suzuki e Ricardo Dias Silva, o edifício foi concluído em 2006, e substituiu o improvisado alojamento que funcionou no centro da cidade durante a década de 1980. Com gestão dos próprios alunos e um apoio intermitente da universidade, essa Casa do Estudante acabou por fechar e ser completamente demolida no início da década de 1990. Hoje os alunos esperam retornar aos seus dormitórios, já que desde abril de 2020 o edifício foi evacuado por conta da pandemia. O prédio é austero, e lembra nos materiais e acabamentos, o mosteiro de La Tourette de Le Corbusier. Guardadas as proporções de escala e nossa condição econômica, o edifício gera os mesmos efeitos das superfícies rugosas sob o sol, as varandas dos dormitórios e os corredores recebem uma luz filtrada por cobogós, e janelas altas garantem a ventilação cruzada nos apartamentos.

Estes bons exemplos de moradia estudantil pelo país atendem uma pequena parcela das necessidades dos nossos alunos universitários. Mas por ínfimo que seja esse conjunto, ainda não adotamos as “janelas virtuais”. Que a vista de um horizonte “real” ainda ilumine arquitetos na urgente produção de habitação para nossos estudantes.

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