Como passei a admirar um Jaime Lerner, mesmo não gostando do outro

Político falho, Lerner era um urbanista de mão cheia que inventou uma cidade

Quando comecei a cobrir política, em 2000, Jaime Lerner era governador em segundo mandato e era detestado por muita gente. Fazia um governo duvidoso, vendendo tudo, do Banestado à Sanepar, passando pelas rodovias. Quando tentou vender a Copel, a casa caiu: comprou a ira de multidões, transformou-se praticamente em um pária político.

Eu mesmo tinha nariz torcido para o governador. Nas coletivas, ele era de falar pouco; fugia assim que podia da imprensa, isso depois de chegar sempre muito, muito atrasado a todo e qualquer compromisso. Para mim, era um sujeito equivocado, na melhor das hipóteses. Sempre achei que governos deveriam fazer o oposto do que ele vinha fazendo (a venda do banco do estado para o Itaú foi particularmente chocante, pelo preço de banana recebido).

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Por anos Lerner seria citado nos debates entre candidatos: cada um queria dizer que o ex-governador apadrinhava o adversário. Eis o tamanho do buraco em que ele tinha se metido. Lembro nitidamente do dia em que ele passou o governo para seu eterno rival, Roberto Requião, em 2003. Eu estava no Palácio e vi as pessoas tentando atacar o carro em que ele iria embora, para sempre, do Centro Cívico. Quando todos estavam dentro, algum amigo bateu na lataria para dizer: vão rápido, não está seguro.

De volta ao saguão, ouvi confuso o que Requião dizia. “Vocês não sabem, dizia ele. “O Lerner pode ser meu rival na política, mas é meu amigo.” Nunca vi o Requião ter complacência com adversários como naquele dia. Justo ele que escancarava os problemas do pedágio, que tinha disputado a prefeitura sem piedade contra Lerner – um prefeito biônico que passou pela Arena. Achei estranho.

Uma outra frase que me deixou curioso foi de meu padrinho, Dídio, que um dia falando de política comentou a diferença de ser governante no período da ditadura e na democracia. Naquela época, dizia ele, você não precisava ter dons políticos. Por isso um empresário como o Canet ou um arquiteto como Lerner podiam se dar b em e ter grandes feitos.

Fazia sentido. Comecei a perceber que minhas discordâncias com Lerner diziam respeito ao governo, onde a política foi uma necessidade, e onde ele teve uma postura mais ideológica (postura provavelmente comprada de outros, como Giovani Gionédis). Mas ele não era um político.

Na geração a que Lerner pertenceu no Paraná, há políticos que vivem para articulações, para disputar cargos, que sabem tudo sobre como atuar nos bastidores. O próprio Requião é um exemplo, Alvaro Dias é outro. Lerner nunca desejou fazer isso, nem sabia fazer.

Diz a lenda que no meio da tarde, quando governador, de vez em quando ele decidia parar tudo e ir ver o pôr-do-sol em algum lugar. Algum parque que ele fez construir, talvez. Era um esteta e um apaixonado por cidades. E nisso tinha um talento extraordinário.

Lerner começou na política justamente por sua vida de urbanista no Ippuc. O governador da época, León Perez, antes de ser pego em flagrante em um ato de corrupção e cassado, indicou o jovem presidente do instiotuto de urbanismo para a prefeitura. Lerner, um menino ainda, era arquiteto e urbanista, mas não parecia preocupado com ideologias.

Sua ideologia era a transformação da cidade. O horror ao carro (“Carro é como sogra, não pode dar espaço demais, senão toma conta”, dizia). O gosto por áreas verdes e por abrir parques. A paixão pela cultura e pela inauguração de espaços como a Ópera de Arame, o Paiol e o NovoMuseu (hoje Museu ?Oscar Niemeyer).

Nos dois primeiros mandatos, com a política suspensa pelos generais, a prefeitura de Curitiba parece ter sido isso: uma mesa com arquitetos e urbanistas e engenheiros talentosos pensando: o que podemos fazer com essa cidade?

Claro que isso passa longe do sonho de uma cidade participativa, democrática. Zero diversidade. Mas o resultado não deixa de ser impressionante. Daquelas cabeças sairiam ruas exclusivas para pedestres, teatros, avenidas estruturais, canaletas para ônibus expressos, parques, vilas, tudo. Absolutamente tudo.

O terceiro mandato já foi diferente, e Lerner se viu na obrigação de escolher quem apoiar para sua sucessão. Embora tenha colocado dois de seus seguidores na prefeitura (Greca e Taniguchi), a magia já tinha se perdido. E com a chegada de Lerner ao governo, em 1995, tudo se perderia de vez.

Embora houvesse ideias boas e necessárias, como a aceleração da indústria, o governo se perdeu pelo caminho. Como político, Lerner era um fracasso. Como gestor de uma economia, não funcionou. Acabou sendo amargo com trabalhadores, acusado de corrupção, e mesmo seu legado de urbanista começava a ruir.

Depois do segundo mandato, as filhas fizeram com que ele prometesse se afastar da política. Levou bastante tempo, mas o nome Lerner deixou de ser usado como pejorativo e suas realizações de prefeito voltaram à memória.

Nesta quinta, fiquei de fato triste com a notícia de sua morte, como fico com a morte de todo ser humano. Mas fiquei particularmente entristecido porque vi uma era de planejamento urbano de minha cidade acabar. O Lerner político, afinal, acabou em 2002. Mas o urbanista vai sobreviver por séculos nas marcas que deixou à nossa volta. E por esse eu tenho profunda admiração.

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