Um Brasil para brasileiro ver

Em cartaz no Museu Paranaense, “Necrobrasiliana” reúne artistas que discutem imagens e discursos do Brasil colonial e como repercutem ainda no presente na vida de pessoas racializadas

Passear pelas escadarias do Museu Paranaense e ler as suas paredes é quase que uma antecipação para o debate que surge com Necrobrasiliana, exposição temporária de artes visuais que ocupa uma sala no anexo do museu desde 9 de Junho.

Percebendo os artefatos, discursos e visões de mundo catalogadas pelo acervo do Museu, que nos aproximam sensivelmente de épocas que só conseguíamos imaginar, vamos tentando compor versões possíveis de uma identidade regional e nacional. Nas várias vitrines, vislumbramos as histórias de expedições, aventuras e gentes que constituem um Paraná e um Brasil que parecem um amálgama de ambições e promessas de futuro. Grupos de diferentes origens que pareceram conviver, mas certamente não ocuparam o mesmo espaço.

“Necrobrasiliana” inclui uma peça que parece faltar não apenas no contexto de exposições do Museu Paranaense, mas geralmente em instituições do Estado que se propõem a contar uma narrativa da história do Brasil: a participação da violência e subordinação de corpos negros e indígenas.

O que segue aqui são algumas percepções e informações reunidas com o curador Moacir dos Anjos, que concedeu entrevista ao Plural, para nos ajudar a entender essa exposição que reúne os artistas Ana Lira, Dalton Paula, Denilson Baniwa, Gê Viana, Jaime Lauriano, Rosana Paulino, Rosângela Rennó, Sidney Amaral, Tiago Sant’Ana, Thiago Martins de Melo, Yhuri Cruz e Zózimo Bulbul.

Brasilianas e os Brasis imaginados

É provável que todos de nós já tivemos contato com uma brasiliana ou parte dela em algum contexto. São documentos produzidos entre os séculos XVI e XIX aproximadamente com o objetivo de “ilustrar o Brasil”, com toda a carga de mistificação e fetichização que essa intenção acompanha. Muitos já vimos imagens de brasilianas ilustrando “cenas cotidianas” no capítulo sobre o “Brasil colônia” dos livros didáticos de história, com ares de um registro neutro (como se fosse possível) de seu tempo, sem a devida contextualização: há muita violência que essas imagens naturalizam, não evidenciando que todo um conceito de vida e povo foi construído na base de corpos escravizados.

Jean-Baptiste Debret, “Um jantar brasileiro”, 1827.

“Necrobrasiliana”, como o prefixo indica, vem criar um outro tipo de imaginário. Um que transforma um passado de exploração e apagamento numa proposição de debates e reflexões sobre como fazer um presente mais consciente e atento. Mesmo trazendo muitas dessas imagens e vozes desse outro tempo, os artistas ilustram um Brasil atual, construído nas costas daquele Brasil que as brasilianas coloniais deixam nas entrelinhas; um com menos paisagens paradisíacas e mais verdades difíceis.

O projeto é um desdobramento do trabalho que Moacir dos Anjos conduz desde 2008, mapeando artistas que “lidam com as violências que formaram e ainda constituem o Brasil”, segundo ele. Cruzou com produtores que trabalham com imagens das brasilianas dos séculos 16 e 19, resignificando e debatendo a função desses documentos, muitos dos quais compõem a equipe de “Necrobrasiliana”.

“Defender os mortos e animar os vivos”

Um universo de técnicas delicadas compõe o trabalho de Rosana Paulino. Com tecidos, linhas e bordados, ela une imagens e fragmentos formando uma espécie de “colcha de retalhos” evocando também uma série de elementos que revelam apagamentos. Personagens centrais na sua série “Musa paradisíaca” são mulheres negras que não sabemos o nome a priori, mas logo descobrimos ser na verdade, brasileiras escravizadas que se tornaram um símbolo de ideologia eugenista que tentava provar a superioridade europeia. Desse mesmo amálgama de imagens da artista, partem alguns fios vermelhos soltos, que lembram um sangue que parece jorrar vagarosamente, mas sem parar.

Rosana Paulino, “Musa Paradisíaca”, 2018.

Também resgatando imagens de um passado de negação de identidades com ideologias coloniais, as pinturas de Thiago Martins de Melo são elétricas, com pinceladas enérgicas, contrastes e composições que hipnotizam. Seus trabalhos são como que “atualizações” de sentimentos, percepções e vontades associadas a esse passado, criando um imaginário que retira negros escravizados e indígenas de uma narrativa de dominação e os conecta com expectativas do presente.

Numa linha de revisitar e atualizar também vai o trabalho de Dalton Paula. Aqui, uma famosa brasiliana é referência: segundo o curador Moacir dos Anjos, o artista produz um tipo de releitura de aquarelas de Debret que “retratavam” a vida cotidiana no Rio de Janeiro na década de 1820. Porém, em vez de incluir famílias de brancos na mesa farta com seus escravos ao lado, Dalton Paulo pinta salas vazias. Com aquarela reproduz aquelas cadeiras coloniais e os mesmos instrumentos de trabalho do passado colonial, mas ninguém está presente. Os ambientes produzidos por Dalton, com uma composição tão rastreável, se tornam um tanto fantasmagóricos, como se provocassem a memória a pensar o que habitava aquelas imagens.

Dalton Paula, “Assentar volta à cidade de um proprietário de chácara”,  2019. Imagem: acervo do artista.

Otimismo pelos que resistiram

“Protesto” e “denúncia” não são formas de resumir a exposição. Não se trata de falar do óbvio: o Brasil é um país racista. Não há apenas o flagrante dessa violência nas obras de Necrobrasiliana, mas também a tentativa de criar novos sentimentos a partir dessa conexão histórica com o passado, sentimentos que não tratam apenas do trauma, mas o ultrapassam para também pensar na cura. Para o curador Moacir dos Anjos:

“São estratégias artísticas que querem ‘defender os mortos e animar os vivos’. Ou seja, defender os mortos de suas dores, mas também, simultaneamente, animar os vivos a fazerem valer, no tempo de agora, os desejos frustrados ou sufocados de tantos no passado. Insistir nessa relação de ‘intimidade’ entre a experiência dos que vivem agora com as vidas dos que há muito morreram me parece, de fato, fundamental.”

Talvez o trabalho que mais representa essa luta seja “Monumento à voz de Anastácia” de Yhuri Cruz. Nele, o artista resgata a simbólica imagem da escrava Anastácia, que é frequentemente símbolo da crueldade da escravidão, e a coloca e um novo plano de ação. Com a ajuda do Photoshop, Yhuri Cruz remove a máscara de tortura da boca de Anastácia e lhe devolve um sorriso e uma voz. Anastácia, agora livre, também vira santa: o artista cria santinhos com sua imagem acompanhado de uma oração (original) que parece ser feita para ajudar a resgatar a dignidade de quem mais precisa. No santinho se lê:

“Se você está com algum PROBLEMA DE DIFÍCIL SOLUÇÃO e precisa de AJUDA URGENTE, peça esta ajuda a Anastácia Livre”.

Yhuri Cruz, “Monumento à voz de Anastácia”, 2019.

Compondo esse tipo de imaginário de resistência está a série “Atualizações Traumáticas de Debret”, de Gê Viana. Nela, o artista também resgata famosas imagens de brasilianas do artista viajante francês, intervindo nelas para criar um cenário onde os personagens negros presentes são celebrados e celebram: são eles que sentam à mesa farta e aproveitam, que cruzam livremente as praças públicas com suas vestes típicas. Em vez de produzir sob o domínio, essas figuras criam um universo próprio com mais cor e vida.

Gê Viana, “Sentem para jantar” da série “Atualizações Traumáticas de Debret”, 2020.

A aproximação com o tempo presente é literal em alguns trabalhos, partindo do campo do discurso e persistência da memória para um universo de práticas e relações que fazem parte do Brasil desses tempos. É o caso de Ana Lira, que traz em seu livro de artista uma série de registros de pessoas reais vivendo em comunidade nas últimas décadas. Numa montagem que lembra um álbum de família, vemos festa, união, estampas coloridas, vestidos de festa. São cenas de otimismo, de força daqueles que, mesmo no mundo desfavorável, resistiram. Essas imagens, para o curador Moacir dos Anjos, formam um tipo de “contra-brasiliana”

Se é possível pensar em um resultado de uma exposição para quem vê, não é supor demais que Necrobrasiliana traz um debate e provação; ao menos, uma reflexão acerca de como a vida cotidiana e os corpos brasileiros são atravessados por visões e práticas de dominação – de quem recebe e quem pratica – herdadas há muito. Nesse sentido, é Jaime Laureano que mais incisivamente cria uma conexão com episódios comuns da vida diária para revelar o que é tão antigo, mas ainda permanece.

“Trabalho” (2017) de Jaime Laureano e observador.

Ao lado de reproduções de pinturas de brasilianas coloniais, Jaime Laureano coloca uma série de placas com depoimentos de pessoas negras contando momento de suas vidas em que foram confundidas com serviçais. Vemos as mesmas imagens de brasilianas estampando camisetas, cestos,  tapeçarias e souvenirs, naturalizando aqueles corpos subordinados. Nessa instalação chamada “Trabalho”, o artista vai criando essas conexões entre passado e presente, revelando cenas do racismo estrutural em práticas e imagens que parecem tentar descolar-se do nosso tempo, mas seguem muito presentes.

Não é possível cobrar de uma exposição de arte um tipo de recepção específica ou prever que uma ou outra leitura vai ser feita. O processo é mais livre e relativo. Mesmo assim, não parece ser exagero dizer que “Necrobrasiliana” é uma exposição que não deixa espaço para passividade, ela demanda fortemente uma reação. Também parece certo dizer que ela pode despertar reações de diferentes polos, inclusive os mais violentos. Afinal, como afirma o próprio Moacir dos Anjos no início de seu texto, “O Brasil é um país fundado (ou inventado) pela violência colonial” e que ainda persiste em aspectos práticos do cotidiano, em violências que “atualizadas através do tempo, produziram uma desigual e persistente distribuição de corpos nos espaços em que a vida é vivida no Brasil.”. Não deixa de pesar também o fato de que, recentemente, um vereador negro em Curitiba quase teve seu mandato cassado pela bancada majoritariamente conservadora por ter promovido um ato antirracista.

Quando pergunto ao curador como a exposição se insere em outras práticas recentes de contestação de nosso passado colonial – como, por exemplo, a derrubada de monumentos -, ele afirma que a exposição “se insere nas capacidades que são próprias da arte, que é nos oferecer (a qualquer um) um outro recorte possível na caracterização e representação do que é o Brasil. Apontando, nesses novos recortes de um todo inapreensível, violências passadas e, também, possibilidades de cura futuras possíveis. Se e como isto vai nos afetar e ser subjetivado politicamente por nós (implicando, assim, ações práticas nas nossas vidas) é algo que não pode ser antecipado.”.

A exposição, enfim, faz o seu trabalho, compondo um imaginário outro daqueles que foram veiculados nos últimos tempos acerca de como foi e é composto qualquer sentido de “identidade brasileira”. Penso numa referência banal: quantos livros didáticos de história já utilizaram imagens de brasilianas para ilustrar a vida cotidiana nos séculos passados e sem a devida contextualização que nos permitiria entender quem eram aqueles grupos? 

Necrobrasiliana traz um imaginário carregado o suficiente para atualizar esse tipo de lacuna na memória social, e faz um convite para que esses sentidos se multipliquem e encontrem vozes, políticas e salas de exposição ainda maiores.

A exposição segue no Museu Paranaense até o dia 28 de agosto. Depois disso, deve seguir para a Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, onde já atua o curador.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima