Cassem Renato Freitas. Ou: que o negro sofra com bons modos, por favor

Renato Freitas
Domar o negro em seus protestos é um esporte dos brancos que se dizem não-racistas

Faz mais ou menos cinco séculos que o Brasil trata os pretos com uma maldade que beira o sadismo. E parte da maldade hoje está no fato de tentar dizer até onde pode ir o preto para reclamar de seus problemas. O que mais sobra hoje, entre os brancos que dizem não ser racistas, é gente querendo ser fiscal de protesto.

Se o preto apanha da PM, se é vítima de preconceito, se sofre discriminação é justo protestar? Claro, dirão todos, embora alguns já de cara vão tentar provar por A + B que o racismo nem é uma coisa lá muito brasileira. Mas mesmo os que dizem entender a dor alheia tendem a dizer que, veja bem, é preciso ter limites.

Se, por exemplo, como aconteceu recentemente, dois pretos são assassinados em crimes que nitidamente têm a ver com racismo, e alguém vai à frente de uma igreja protestar, os fiéis talvez não gostem. Mas se, incomodados, os pretos ousam entrar no prédio público e fazer ouvir a sua voz numa igreja erguida por escravos – aí o céu desaba.

Domar o negro em seus protestos é um esporte dos brancos que se dizem não-racistas. Afinal, uma coisa é ser amigo de um preto, isso cai até bem numa conversa. Ressaltar que a empregada é quase parte da família. Que somos todos muito evoluídos.

Outra coisa bem diferente é ver a agonia dessa gente escapar do cercadinho. É ter de suportar o desmonte da farsa quando gente indignada, que não está mais a fim de jogar pelas regras mais estritas, resolve que o único caminho é ser mais radical. É exigir ser ouvido, ainda que na marra.

A exigência do bom comportamento nos protestos é um grilhão adicional que se coloca no negro. Sofra em silêncio, meu caro, porque nosso ar civilizado não tem espaço para teu grito. E se algum dos teus for novamente assassinado, não me vá incomodar o padre ou o pastor. Há limite para tudo. Tenha um pouco de modos nessa tua agonia.

O circo todo é um modo de manter as aparências – mas principalmente, um modo de mostrar que apesar de tudo, apesar de tantos séculos e até de algumas leis e disposições em contrário, o negro ainda está preso a um lugar. Ao lugar do bom preto, de cabeça baixa e riso amigo.

Talvez no fundo quem age assim saiba que a sorte dos brancos no Brasil é inacreditável. Em outros países, os pretos se rebelaram e tomaram o poder. Ou formaram grupos radicais como os Panteras Negras e acrescentaram a seu discurso a força das armas.

Diz a frase célebre: a sorte das maiorias é que as mulheres e os negros só querem direitos, e não vingança. Mas para evitar que o dia da vingança chegue, talvez o que reste a quem já viu ou cometeu tanta injustiça seja isso: fazer a farsa da igualdade racial prosperar.

E é por isso que gente como Renato Freitas incomoda tanto. Ele faz os outros lembrarem que o problema existe. E sabe-se lá o que pode acontecer quando todos despertarem.

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