Gilda da Boca Maldita finalmente ganhou placa de bronze do seu fã clube

Trabalho de Guilherme Jaccon para o 67º Salão Paranaense é um contra-monumento e uma homenagem à travesti que circulava no centro de Curitiba nos anos 1970 e 1980

Era 17 de março de 1983, e a “Gilda da Boca Maldita” havia acabado de morrer. O jornal Tribuna do Paraná falava sobre à travesti que, naquela época, era uma das figuras populares mais conhecidas no centro da cidade: “Enquanto nenhum familiar reclama o corpo que se encontra na geladeira do Instituto Médico Legal, as manifestações pela morte de “Gilda” já começaram, espontaneamente. Os estudantes foram os primeiros, ao lado dos “gays”, a colocar bilhetes e velas acesas no marco “Boca Maldita”, já na noite de anteontem. Ontem à tarde, o suplente de deputado estadual, o folclórico Pedro Lauro, ao lado do obelisco de granito, começou a arrecadar contribuições para a confecção de uma placa de bronze para homenagear a “Gilda”…”

Enquanto a morte de Gilda comoveu os seus, levando cerca de 300 pessoas para o enterro, algumas até inesperadas – como o ex-vereador Algaci Túlio, que teria carregado seu caixão – no cemitério do Santa Candida, a associação da Boca Maldita se recusou a estender sua homenagem. Na época, um movimento realizou uma vaquinha para a confecção de uma placa. Ela diria: “Gilda, você deixou saudades. Do povo de Curitiba”. Porém, o pedido foi negado pelo presidente da associação à época, o político Anfrísio Siqueira, que era publicamente contra qualquer comoção entorno do falecimento da travesti.

Aí, quase 40 anos depois, só em abril de 2022, Gilda ganhou a homenagem que foi idealizada no começo, e até mais. Foi através do trabalho do artista e produtor cultural Guilherme Jaccon, para o 67º Salão Paranaense de Arte Contemporânea, que a placa para Gilda foi finalmente instalada. Não só isso, ela ganhou um cortejo carnavalesco, com sambas e jograis feitos especialmente para ela. 

A placa para Gilda, parte do projeto “Gilda, você deixou saudades”, de Guilherme Jaccon, para o 67º Salão Paranaense de Arte Contemporânea. Foto de Luana Navarro.

Com cara de monumento ou marco público, esse trabalho de arte trouxe à tona uma memória afetiva de muitos, uma figura marginalizada e o debate sobre quem tem direito de lembrado no espaço público. 

“Meu objetivo é a reparação histórica. Se um grupo de pessoas, fez um abaixo-assinado, juntou dinheiro, fez uma placa e as instituições negaram na época: o mínimo é 40 anos, entendendo que os LGBTs fazem parte da sociedade, são de Curitiba e que ela é uma figura importante… O mínimo é recolocar essa placa.”, disse Guilherme, em entrevista. 

Mesmo assim, pode ser que a homenagem do artista também seja pontual, e que a placa suma de lá até o fim desse mês de Outubro, quando o Salão Paranaense terminar. 

Um trocado ou um beijo

Naquela época, Gilda era quase um personagem onipresente na região da Boca Maldita, no centro de Curitiba. Aparentemente, quem não a visse na rua, esperava ela aparecer a qualquer momento dobrando a esquina. Jornais a chamavam de um ser “folclórico” e irreverente, justificando a sua presença garantida nos carnavais da cidade e também o seu jeito teatral – para não dizer transgressor – numa das regiões mais emblemáticas da cidade. 

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A placa da Boca Maldita, que não está mais lá, nos ajudava a lembrar quem frequentava o espaço.

Era o tempo dos “Cavaleiros da Boca Maldita”, quando a “confraria machista” – fundada pelo político Anfrísio Siqueira -, ainda se reunia naquela esquina da Av. Luiz Xavier, entre os bares e cafés, para discutir os assuntos do momento. Lá, a travesti Gilda, que não possuía casa e nem posses, perambulava, pedia trocados, dançava, provocava. 

Sua morte trouxe comoção ao nível da figura pública que era. O Estado do Paraná publicou, já no dia seguinte à morte de Gilda, que o IML teria recebido vários donativos para o funeral. Nem precisou. Uma funerária da cidade doou um caixão, a travesti Márcia Regina cedeu parte do túmulo da família para o enterro e roupas foram doadas para o velório. Centenas de pessoas compareceram ao funeral e, após o enterro, transformaram o obelisco da Boca Maldita num tipo de memorial.

Um registro de Gilda, em seu tempo. Foto sem autoria. Fonte: Reinaldo Bessa.

Hoje, Gilda é lembrada, sobretudo por quem viveu o seu tempo, como aquela que distribuía beijos por quem passava na Boca Maldita. Muito é contado através da oralidade, em relatos de memória de  quem conviveu com a travesti. São poucos, mal organizados ou quase inexistentes os registros sobre Gilda em acervos das instituições municipais. Uma pena. Quem confere no Google, mesmo assim, vê que ela sobrevive em várias reportagens, documentários e trabalhos acadêmicos. 

“A Gilda, do que eu encontrei, ela era muito ligada ao Carnaval. (…). É uma pessoa que viveu numa miséria, e ficava na Boca Maldita pedindo “um trocado ou um beijo”. Com algumas pessoas que conversei da época, diz que tinha as pessoas que ela ia voluntariamente, e algumas pessoas que pagavam ela pra ficar rindo dela. Então, tem esse lugar do “bem e mal”. Mas, ela morou ali. Morava também na Des. Motta, onde ela faleceu. Era uma pessoa que todos tinham um afeto por ela. Não era uma figura indesejada.”, disse Guilherme Jaccon.

Considerar Gilda apenas como um personagem alegre e caricato, uma figura do Carnaval ou mera quebra da monotonia citadina é uma redução grosseira do que ela representa hoje, sobretudo para a comunidade LGBTQIA+ de Curitiba. A presença de uma travesti, naquele tempo, circulando num ambiente masculino, fazendo graça e deboche, é encarada como resistência.

Registro do cortejo em homenagem à Gilda, produzido por Guilherme Jaccon.

Assim, a maneira que Guilherme Jaccon escolheu para homenagear Gilda, na forma de um contra-monumento, reflete muito sobre como lembrar, nos dias de hoje, de alguém que viveu e sofreu sendo quem é num contexto social e histórico que empurrava para a marginalidade.  

Placa, homenagem e trabalho de arte

Quem passa na Boca Maldita hoje vai precisar procurar pela placa em homenagem à Gilda. Não parece uma “obra de arte”, e nem foi pensado para ser um, como comentou Guilherme. 

Ali, bem próximo ao monumento da Boca Maldita (a escultura de pedra que lembra uma boca e costumava ter dentes de metal), bem de frente para a Banca da Boca, está instalada a placa para Gilda. Ela diz “Gilda, você deixou saudades”, acima da data de falecimento.

A ex-curadora do MAC-PR Ana Rocha, o artista Guilherme Jaccon e o historiador Paulo Reis, ao lado da placa para a Gilda, neste ano. Fonte: Revista LadoA.

Como o projeto do artista faz parte do Salão Paranaense, na categoria de intervenções urbanas, os trâmites burocráticos não foram os mesmos do que um “monumento”. Foi isso, justamente, que garantia sua aceitação. Segundo Guilherme, quando seu trabalho era barrado pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), responsável pela paisagem da região, a diretora do Museu de Arte Contemporânea do Paraná, Ana Rocha, precisava recorrer ao órgão: “Ela tinha que ir lá pessoalmente e falava “Não é uma placa, é uma obra do artista Guilherme que estará no Salão”. Aí eles falaram “Ah, então tá.”. 

Um registro de Gilda. Foto sem autoria. Fonte: LABEURB/UNICAMP.

A placa foi instalada num local muito próximo ao que deveria ter sido em 1983. Bem ao lado dela está o obelisco da Boca Maldita, onde existem algumas outras placas mais oficiais, instaladas pelos políticos locais. Ela se integrou à paisagem habitual da Rua XV, com seu ar de autoridade. Como resultado, foi até confundida como um gesto patrocinado pela Prefeitura.

“O que rolou, que eu achei muito legal, é que no dia seguinte da instalação tinha muita gente postando no Facebook e algumas agradecendo o Greca, achando que é da Prefeitura. Porque ela tem esse “layout”, né? Eu queria isso. Queria que fosse uma placa que a pessoa passa e pense que é uma placa da cidade. Não queria que fosse uma “obra”. É a placa que a Gilda devia ter tido em 83…”, contou Guilherme. 

Na verdade, a placa original, aquela encomendada em 1983 logo após a morte de Gilda, era um pouco diferente, um pouco estilizada, como se nota na imagem abaixo. 

A primeira placa feita para Gilda. Foto sem autoria. Fonte: Estado do Paraná/Julio Garrido.

É importante dizer que, lá em 1983, a placa inicial não deixou de ser instalada por qualquer questão estética. À época, Anfrísio Siqueira, dizia simplesmente ser “impossível”, justificando que o local era tombado como patrimônio histórico. Também dizia, ao mesmo tempo, “que o travesti Gilda nada fez para a cidade e não pode receber tal honraria.”, como ficou registrado no jornal Gazeta do Povo, em 20 de março de 1983. Após esse embate com os amigos de Gilda, placas em homenagem ao próprio Anfrísio e da fundação da Boca Maldita foram instaladas. 

“Que povo é esse?”

A memória de Gilda, em uma cidade conservadora como Curitiba, transparece uma ambiguidade sobre o que ela representava para aqueles que a conheciam e os contornos dessas relações. 

Em alguns grupos de Facebook que reviram lembranças do cotidiano de antigamente, como “Antigamente em Curitiba” e “Curitiba Antiga”, Gilda volta e meia aparece em alguma publicação. Os comentários, muitas vezes, a lembram com carinho. 

Comentários à uma postagem que lembrava a morte de Gilda, no grupo “Curitiba Antiga”.

Falando sobre como e por que Gilda alimenta lembranças tão afetuosas e despertou admiradores no seu tempo, Guilherme comentou: “Eu acho que a Gilda tem uma coisa, que talvez tenha sido um pouco minha motivação de ter ido a fundo niso, que Gilda é o oposto de Curitiba, né? Ela é o deboche. Ela debocha do conservadorismo, da caretice da cidade. Eu vejo ela rindo de Curitiba, quando eu penso nas coisas, sabe? Eu acho que isso, talvez, cause alguma coisa em pessoas que talvez não sejam tão conservadoras assim, sabe? (…) Acho que uma sensação de “puts, eu não preciso ser tão duro”. Eu vejo desse jeito. (…) A Gilda afronta, ela afronta Curitiba. Acho que por isso passou a ser um ícone da comunidade LGBT também.”.

Não é possível esquecer que Gilda era tão presente na vida das pessoas, entre outros motivos, porque precisava pedir dinheiro para sobreviver. Isso tudo para não dizer também que esses saudosismos trazem apenas uma superfície do tratamento que Gilda provavelmente recebia, correndo o risco de transparecer uma visão fetichizada acerca da travesti da Boca Maldita.

O gesto de Guilherme vai justamente em outro caminho. Usando o “artifício da arte”, como ele diz, conseguiu contornar os impedimentos de 40 anos atrás. Poderia ter feito outra coisa, em outro lugar, mas qualquer vírgula diferente não reviveria essa memória da mesma forma. 

Entrando num universo mais oficial, dando ao seu trabalho de arte uma roupagem de homenagem pública – e vice-versa -, ele coloca Gilda num campo além de uma mera lembrança caricata. Com a placa, o cortejo e o arquivo que está construindo (parte dele está no perfil @arquivogilda), ele não a deixa cair no esquecimento. 

“Gilda, você deixou saudades” é mais um de vários projetos artísticos e acadêmicos que se debruçaram sobre a vida da Gilda da Boca Maldita. Aqui vão alguns outros: documentário “Beijo da Boca Maldita”;  artigo “Gilda em Curitiba: o corpo transgressor invade a cidade” de Caroline Marzani e Naira Nascimento; sobre o cortejo para Gilda, em abril de 2022, organizado por Guilherme Jacoon; sobre o espetáculo “Para Gilda com Ardor”, de Ricardo Nolasco; exposição “Gilda, sem limites”, realizada no Museu da Imagem e Som; e sobre o circuito de espetáculos e performances “Gilda convida Maria Bueno”.

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