As crianças no Holocausto

Entre as seis milhões de vítimas do Holocausto, cerca de um milhão e meio eram crianças. Dentre estas, aproximadamente um milhão eram judias e as outras 500 mil faziam parte de outras populações perseguidas e dizimadas pelos nazistas

Em 1939, a população judia na Alemanha passou a ser privada de direitos civis, de suas propriedades pessoais e marginalizada pela comunidade nacional, situação que vinha aumentando gradativamente desde 1933. Com as conquistas de outros países europeus pelos alemães, consolidou-se a implementação de políticas antissemitas também nos territórios ocupados, aumentando a discriminação e a segregação desta parcela da população. Definido como inimigo interno ou como alguém que pudesse contaminar a suposta pureza racial ariana, o judeu deveria ser destruído.

Os judeus da Alemanha e dos países ocupados passaram a sofrer políticas antissemitas, como o encaminhamento para guetos e campos de concentração. Na maioria dos campos, o destino de cada um era determinado pelo chefe do campo, assim que os comboios chegavam: homens e mulheres sadios para os campos de trabalho escravo, idosos e doentes para as câmaras de gás. O destino das crianças, judias e não-judias, era classificado da seguinte maneira: algumas eram assassinadas com suas mães assim que chegavam aos campos de extermínio, outras mais velhas eram enviadas aos campos de trabalho, e outras eram selecionadas como cobaias para experimentos “médicos” cruéis que resultavam em suas mortes.

A ideia de se acabar com o mal pela raiz naturalizou o extermínio das crianças neste contexto. Prevendo situações de violência contra os mais jovens diante das políticas antissemitas do nazismo, algumas famílias judias enviaram seus filhos a famílias na Grã-Bretanha por meio do Kindertransport, entre 1938 e 1939, salvando a vida de aproximadamente 10.000 crianças.

A vida das crianças nos guetos

Criança nas ruas do Gueto de Varsóvia. Foto tirada entre 1940 e 1943

Na Polônia e nos países onde era grande o número de judeus, decidiu-se concentrá-los temporariamente em guetos localizados geralmente em bairros marginalizados da cidade, onde era proibido que saíssem até que fosse decidido o que fazer com esta população. A superlotação era chocante e um exemplo disso são o gueto de Lodz, onde havia 165.000 judeus, e o de Varsóvia, com 450.000. Nestes locais, as condições de vida eram desumanas e a inanição somada a falta de higiene fez com que os índices de mortalidade fossem altíssimos, principalmente entre idosos e crianças. Para sobreviver, muitos jovens contrabandeavam comida para suas famílias e amigos, fugindo por pequenos buracos nos muros dos guetos, algo muito arriscado porque caso fossem capturados seriam severamente punidos.

Apesar das péssimas condições de vida, os habitantes do gueto movimentavam uma vida cultural e religiosa, mantiveram orfanatos com atividades recreativas e educativas para as crianças que ali se alimentavam e recebiam alguma supervisão médica. Nestes orfanatos, acolhiam-se crianças que ficavam órfãs na medida em que seus pais morriam por doenças ou eram assassinados, e abrigavam-se crianças de outros guetos e cidades vizinhas na mesma situação. Apesar do decreto de 15 de outubro de 1941, que instituiu a pena de morte a quem protegesse judeus, algumas pessoas e grupos de resistência tentavam ajudá-las enviando-as para a parte ariana da cidade.

A vida das crianças nos campos

Na tese de Luciane Fernandes, intitulada “Pelos olhos da criança: concepções do universo concentracionário nos desenhos de Terezín”, temos um vislumbre de como viviam as crianças no campo de concentração de Terezín, hoje parte da República Tcheca. Aproximadamente 15.000 jovens passaram pelo campo de concentração de Terezín. Destes, apenas 93 sobreviveram ao confinamento e extermínio impostos pelos nazistas. Ao chegar a Terezín, as crianças eram separadas dos seus pais e levadas aos alojamentos para meninos e meninas respectivamente, onde viviam em quartos superlotados e com cuidadores. Elas recebiam tarefas diárias como limpar os alojamentos ou estar disponível para outros serviços.

A educação nos campos era proibida, mas os nazistas não impediam que as crianças praticassem atividades esportivas e artísticas, como desenhos e pinturas, podendo manter também a escrita de diários. A arte neste contexto funcionava como um meio para extravasar o medo e a dor, sendo uma ferramenta de sobrevivência de sua humanidade frente à barbárie imposta pelos nazistas, o que proporcionou testemunhos da vida cotidiana do campo. Para fazer os desenhos, as crianças usavam giz de cera e aquarela, além de colagens sobre qualquer suporte disponível, já que os materiais eram escassos e os papéis reaproveitados a partir de formulários do campo e papéis usados.

Pavel Sonnenschein, falecido aos 13 anos, desenhou os interiores do campo de Terezín

Apesar da proibição, houve um programa clandestino de ensino para as crianças, que além das atividades artísticas oferecia disciplinas formais das escolas tchecas. Os professores eram muito capacitados, como era o caso de Friedl Dicker-Brandeis, professora de artes que guardou quase 5 mil desenhos em duas malas antes de ser morta em Auschwitz, salvando dezenas de testemunhos e memórias das crianças que viveram o Holocausto. As pesquisas históricas foram incorporando gradativamente esses materiais como fontes históricas, mesmo com vários debates acerca da credibilidade desses registros feitos por crianças.

O futuro das crianças que sobreviveram

O abandono, a negligência e a violência contra a criança sempre existiram e este era um assunto pouco debatido e denunciado na sociedade, ocasionando inúmeros casos de brutalidade e violação de direitos semelhantes aos que ocorreram durante o Holocausto. Por isso é tão importante rememorar as crianças que viveram este crime contra a humanidade. Todos os jovens que passaram pelos guetos e campos de concentração vivenciaram uma situação-limite de trauma, seja antes, durante ou depois do Holocausto, por terem sido sistematicamente segregados e perseguidos, arrancados do convívio social e familiar e por conviverem com a fome, frio, doenças e o medo da morte. Outras crianças, como no caso de Anne Frank, ficaram anos confinadas em esconderijos como sótãos, porões e celeiros – sem ver a luz do dia.

A maioria não sobreviveu, mas aquelas que escaparam vivenciaram um processo de lenta recuperação de sua identidade, dos laços familiares e da memória da infância perdida. Algumas ainda lutam por indenização com a ajuda de associações para crianças vítimas da Guerra, como é o caso de sobreviventes que sobreviveram em orfanatos ou acolhidos por famílias adotivas. Muitos só descobriram suas origens depois de adultos e foram informados tardiamente das mortes de seus pais biológicos durante o Holocausto. Outros, no entanto, procuraram ocultar suas raízes judaicas com medo de sofrer violências e represálias.

Para muitas das crianças, o fim da Guerra não trouxe o alívio das experiências traumáticas pelas quais passaram, mas os que testemunharam contribuíram para as evidências das atrocidades cometidas pelos nazistas durante este período. Mesmo aqueles que não sobreviveram testemunharam o Holocausto por meio de diários, desenhos, pinturas e colagens, que se revelaram enquanto fontes testemunhais únicas de um dos maiores genocídios do mundo.

“As últimas palavras de minha mãe martelavam no meu ouvido, estavam sempre comigo: – Vai, Merkele, vai, talvez consiga sobreviver. Pelo menos alguém de nossa grande família, talvez tu, minha filhinha. Que haja alguém para contar… – Agora, com as forças renovadas, minha missão era continuar lutando pela vida, para sobreviver, a qualquer preço.” Miriam Yahav (15 anos), Polônia.
Fragmento retirado do livro “Através de nossos olhos – Crianças dão seu testemunho sobre o Holocausto”.

Referências

Miriam Yahav – Sobrevivente do Holocausto, nasceu em Bialystok, Polônia, em 1927. Seu nome era Merka Szewach. Os pais e a irmã morreram na revolta do gueto de Bialystok, em outubro de 1943. Foi deportada a Treblinka, depois a Maidanek e Auschwitz. Em 1949 foi para Israel, indo viver em Beersheva.

https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8158/tde-17092019-160757/en.php
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-09032016-145907/publico/LUCIANE_BONACE_LOPES_FERNANDES.pdf
http://www.morasha.com.br/holocausto/lembrancas-de-criancas-e-jovens-da-shoa.html
https://www.ihu.unisinos.br/noticias/530450-uma-desoladora-arte-de-criancas-judias-em-um-campo-de-concentracao
https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/plight-of-jewish-children

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