Dar ou doar é uma coisa rara. Digo, no seu sentido pleno.
Seja quando nos referimos a bens materiais, a nosso tempo e energia ou mesmo às nossas emoções para com terceiros.
Geralmente, há duas vertentes nesse gesto cotidiano que é dar.
A primeira é aquela que dá. Mas, imediatamente, já espera algo em troca. A segunda é aquela que dá, mas vê, em dar, um sacrifício e que, então, devemos dar por ser uma privação, por se achar bonito e redentor o sofrimento de dar. No fundo, esses dois são os mesmos.
Eu te amo, mas só se você me amar de volta. E, se amar, no mínimo deve ser com o mesmo tamanho de amor, com o mesmo formato e a com a mesma duração.
Como se fosse possível medir.
Proliferam na internet, nos aplicativos de encontros e também fora dos meios digitais ditos que exigem – exigem – reciprocidade, quando se trata de amor.
Amor nunca é recíproco. Isso é ilusão. Nascida talvez na época dos trovadores no século XII.
A gente envia uma coisa, recebe outra diferente ou mesmo não recebe nada de volta.
E, assim, qualquer coisa que insatisfaça os critérios de reciprocidade, deixa o “doador” com um beiço de tristeza, raiva, ressentimento, pois sob sua ótica, isso não é amor.
Não me excluo desses comportamentos. De outra forma, eu abriria a boca e sairia luz de dentro de mim e não palavras.
Geralmente, os pares que vão ter os relacionamentos mais satisfatórios e talvez até felizes em alguns momentos são aqueles que entenderam a não reciprocidade de seus amores e se aceitam mesmo assim: você deposita isso naquilo que chamamos de “nós”, eu deposito isto, e a soma dessas partes é um “nós”, que é diferente da soma do “eu” e do “você”.
Eu gosto de você, do meu jeito, e você gosta de mim, do seu jeito, e é assim.
Porque eu não sou tão belo quanto imaginava. E me vejo feio, algumas vezes, em seu espelho e você não é tão bela quanto eu imaginava e lhe devolvo não só as suas belezas no espelho que sou para você, mas também suas feiuras. Se eu aceitar as belezas e as feiuras que você me dá e você aceitar as minhas belezas e feiuras, que eu lhe dou também, então, podemos ter uma narrativa juntos até que seja possível. Ou até que a morte nos separe, tão ao gosto do amor romântico.
Lembro de uma passagem do filme Adaptação (2002), de Spike Jonze, em que Nicholas Cage interpreta irmãos gêmeos.
O primeiro irmão é intelectual, culto, roteirista de cinema, mas sofre de ansiedade social, é tímido, não sabe lidar com as pessoas, apesar de sentir uma necessidade louca de ser aceito pelos outros, o que lhe provoca ainda mais ansiedade.
O segundo irmão, de início, é retratado ao público como meio bobo. Porém, ele é relaxado, descontraído, as mulheres o adoram e ele está sempre acompanhado de parceiras que estão felizes simplesmente por estarem ao lado dele.
Em dado momento da história, os dois estão conversando e o primeiro, o com fobia social, diz:
– Lembro da vez que você estava paquerando, conversando com aquela menina, a Fulana. Eu vi da janela da biblioteca. Você estava tão feliz!
– Ah, a Fulana, como eu estava apaixonado…
– É, mas quando você virou as costas pra ela e foi embora, elas começaram a tirar sarro de você, de como você era estúpido e desajeitado…
– Sim, eu ouvi elas dizendo isso… de onde eu estava ainda dava pra ouvir…
– Mas.. você parecia tão feliz, como pode?
– E eu estava mesmo. Olha… o amor que eu sentia por Fulana era meu. Ninguém podia tirar ele de mim. Nem ela. A gente é aquilo que a gente ama e não quem ama a gente. Isso é uma coisa que eu decidi um tempo atrás…
Amor e dar são uma decisão.
E, por isso, essa fala parece se encaixar perfeitamente ao trecho que selecionei para compartilhar hoje com você. Ele vem do livro A Arte de Amar, de Erich Fromm, escrito em 1956. O primeiro parágrafo fala do primeiro grupo (que dá esperando algo em troca) e do segundo (que vê dar como um sacrifício). No segundo parágrafo, ele fala de um terceiro grupo de pessoas que, imagino, seja menor que os dois primeiros.
Que é dar? Embora pareça simples a resposta a esta pergunta, ela em verdade é cheia de ambiguidades e complexidades. O equívoco mais vastamente espalhado é o que entende que dar é “abandonar” alguma coisa, ser privado de algo, sacrificar. A pessoa cujo caráter não se desenvolveu além da etapa da orientação receptiva, explorativa, ou amealhadora, experimenta o ato de dar dessa maneira. O caráter mercantil deseja dar, mas só em troca de receber; dar sem receber, para ele, é ser defraudado. Aqueles cuja principal orientação é não-produtiva sentem que dar é um empobrecimento. A maioria dos indivíduos desse tipo, portanto, recusa dar. Alguns fazem do ato de dar uma virtude, no sentido de um sacrifício. Sentem que, por ser doloroso dar, deve-se dar; a virtude de dar, para eles, reside no próprio ato de aceitação do sacrifício. Para eles, a norma de que é melhor dar do que receber significa que é melhor sofrer privação do que experimentar alegria.
Para o caráter produtivo, dar tem um sentido inteiramente diverso. Dar é a mais alta expressão da potência. No próprio ato de dar, ponho à prova minha força, minha riqueza, meu poder. Essa experiência de elevada vitalidade e potência enche-me de alegria. Provo-me como superabundante, pródigo, cheio de vida e, portanto, como alegre. Dar é mais alegre que receber, não por ser uma privação, mas porque, no ato de dar, encontra-se a expressão de minha vitalidade.
Parece que o irmão “bobo” do filme Adaptação não era tão bobo assim.