A matéria da qual são feitos os melhores livros

Parte significativa dos livros traduzidos e publicados, dos autores premiados, dos sucessos de vendas vieram de encontros improváveis

Eu estava em Sharjah, em um ônibus a caminho do deserto, sem saber ao certo como lá havia chegado. Explico melhor: primeiro, havia me inscrito no Brazilian Publishers, um programa excelente de internacionalização da literatura brasileira ligado à APEX. Depois, me candidatei e fui convidado para a Sharjah International Book Fair, uma grata surpresa, principalmente pelas despesas todas pagas. O resto era tentar acompanhar a programação, que envolvia atividades do café da manhã ao jantar.
Quando voltava para o quarto, era o tempo de tomar um banho e me atirar na cama. E dormir mal, como sempre nos quartos de hotel.

Foi justamente por isso que só notei no terceiro dia o papel com a programação cultural: passeio no deserto, visita às ruínas, observação em telescópios. Era essa a sensação principal da visita: batalhava o dia todo e estava perdendo tudo! Correndo atrás do prejuízo, escrevi para a Majd Alshehhi, uma das organizadoras do evento e ponto de contato dos brasileiros. Ela respondeu que o ônibus para o passeio do deserto sairia em 20 minutos! Foi assim que, atrasado como sempre, cheguei esbaforido para me juntar ao grupo.

O ônibus tinha o forro todo vermelho, com algumas fitas coloridas penduradas próximas do motorista. O guia trajava o ​​dishdasha e óculos escuros. E, como se já não houvesse surrealismo o bastante, foi lá que conheci o German Baquiola, o editor argentino.

Estávamos sentados comportadamente no ônibus, à espera do que viria. Atraindo todos os olhares, passou por nós uma figura grande e despachada, alto e loiro, com o celular na mão. Ele começou a falar com o motorista, em inglês, e explicar que queria conectar, via bluetooth, o aparelho ao sistema de som do ônibus. O motorista gesticulava, German gesticulava de volta, e estava bem óbvio que ninguém se entendia. Não daria certo. De repente, o ônibus foi inundado pelo som do David Bowie, “This is not America”, e German abaixou os óculos escuros para explicar a escolha musical: “Well, this is not America”, disse, apontando para o deserto.

Não parou por aí. Sem que ninguém houvesse perguntado, começou a contar sua história no mercado editorial. Como foi obrigado a deixar a Argentina, quando Macri foi eleito prefeito de Buenos Aires, por conta da perseguição política que o deixou desempregado. Como passou pelo Chile, Colômbia e Peru, conectando editores ao seu projeto e a sua figura. E como chegou ao Equador, com mil dólares, para fundar uma editora e uma livraria em um país com na época quinze milhões de habitantes e terríveis marcas de consumo de livros por habitante.

Neste ponto, estávamos todos interessados, e ele seguiu conferenciando enquanto Bowie cantava. Contou que, chegando ao Equador, descobriu existirem menos de cinco editoras e livrarias no país, e que a grande paixão nacional era a dança. Criou, assim, o Bailando con Libros, um programa que convidava as pessoas a dançarem dentro da livraria. Simples assim: entrou na livraria e dançou uma salsa completa, ganhou um livro. Uma ideia tão surreal que acabou dando certo, no melhor estilo realismo mágico. German terminou sua apresentação contando que, em 2020, o número de editoras e livrarias do Equador já passava de trinta. Batemos palmas, entusiasmados.

Parecia que ia acabar aí. Foi neste ponto que German revelou seu truque: convocou os editores tranquilamente acomodados no ônibus a se levantarem e, como ele fizera, apresentar sua editora, sua história no mercado dos livros, como haviam chegado em Sharjah. Num instante, eu estava de volta à quinta série, sendo intimidado a participar do jogral. Tive que explicar de onde tirei o nome da editora Rua do Sabão e ouvir algumas histórias sem graça dos editores da Holanda e da Eslovênia. Fiquem sabendo: legais mesmo são os sulamericanos.

Claro que ficamos amigos. Tal qual parceiros de longa data, idealizamos um projeto de integração cultural chamado Portunhol Selvagem. No dia seguinte, entramos no mesmo táxi, no outro, no mesmo ônibus, e, adivinhem? O táxi faria uma corrida de vinte minutos e lá estava German pedindo que o motorista sincronizasse o bluetooth do rádio ao do celular dele para tocar David Bowie. No ônibus, a caminho da Cidade do Livro, em meio aos editores egípcios e outro grupo de desconhecidos, lá ia ele repetir a mesma cena, explicando a seleção musical porque, “Well, this is not America”, contando do Bailando con Libros e instigando todos a se apresentarem.

Encontrei German novamente em reuniões virtuais, nos meses seguintes, iniciamos nossos projetos, marcamos um encontro que não deu certo. Em maio próximo, pretendo encontrá-lo na feira do livro de Buenos Aires.

Sei que parte significativa dos livros traduzidos e publicados, dos autores premiados, dos sucessos de vendas, vieram de encontros casuais, inesperados — mágicos, para usar uma palavra que gosto bastante. Se tivesse entrado em outro ônibus, ou ido a Sharjah em outro ano, ou ficado doente, não o teria conhecido. E não teríamos a publicação de Marco Lucchesi e Maureen Miranda na Argentina e Equador, de Roxana Landívar e Santiago Craig no Brasil, de tantos livros que faremos juntos.

Os melhores livros são feitos de coincidências. Quando passamos por uma pilha de livros, testemunhamos pequenos milagres.

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