Vozes silenciadas, lutas invisibilizadas: o grito das lésbicas negras

Mesmo que a mulher lésbica branca possa ser vítima de lesbofobia, ela também pode ser a opressora que invisibiliza a mulher negra lésbica

Em nosso trajeto pela vida, há momentos em que somos despertados para realidades que abalam nossa inocência e nos abrem os olhos para a crua complexidade do mundo ao nosso redor. Durante grande parte da minha trajetória, acreditei que ser uma mulher negra acarretava mais desafios do que ser uma mulher lésbica. No entanto, o tempo e a experiência me mostraram o quanto eu estava enganada. As violências que essas identidades são alvo não estão isoladas, elas se somam.

Recordo-me do momento em que soube do assassinato de Luana Barbosa, em 2016. Esse acontecimento marcou um ponto de virada em minha vida e me trouxe um outra compreensão sobre ser uma mulher negra e lésbica. A brutalidade do episódio, marcado pela masculinização de seu corpo negro e uma série de abusos e agressões, lançou luz sobre a interseção das opressões.

Luana, ao exercer seu direito de ser revistada por uma policial mulher, foi violentamente agredida por policiais homens. Seu rosto foi arrastado no chão, ela foi espancada e jogada na viatura. Na delegacia, as coisas não melhoraram: ela foi acusada de agredir os policiais que a tinham atacado. O boletim de ocorrência descrevia os policiais como vítimas da violência de uma mulher preta e lésbica, sem qualquer menção à possibilidade de sua defesa.

Infelizmente, a busca por justiça e direitos por parte de grupos de mulheres e pessoas negras não foi suficiente para garantir a visibilidade necessária ao caso de Luana. A falta de repercussão, local e nacionalmente, destacou a complexa teia de fatores que contribuem para a invisibilização de determinados grupos, desde a incapacidade das mídias tradicionais em abordar o racismo, até a relutância em compreender a importância da comunicação na mobilização contra o racismo institucional.

O caso de Luana, que partilha semelhanças comigo – mulher negra e lésbica “masculinizada” — também demonstra como nossa identidade é insuficiente para uma sociedade enferma. A intersecção entre lesbofobia e racismo resulta em um sofrimento amplificado para nós, mulheres lésbicas negras, que enfrentamos uma exclusão dupla. Nossas vozes são abafadas, nossas histórias e experiências são relegadas ao silêncio e nossas vidas são frequentemente negligenciadas.

A falta de representação e visibilidade na sociedade nos afeta profundamente. Raramente somos retratadas de maneira autêntica e positiva nos meios de comunicação e na cultura popular. Isso nos limita o desenvolvimento de referências saudáveis e positivas, além de nos roubar a oportunidade de compartilhar nossas experiências e de compreender a complexidade de nossas identidades, alimentando o medo do julgamento e da discriminação.

Aliás, o medo se torna um companheiro constante. Desde o receio de ser perseguida, até o enfrentamento do silenciamento imposto por grupos que deveriam ser aliados. E não é raro que essa sensação de insegurança leve ao adoecimento psíquico e isolamento emocional.

Angela Davis, com sua sabedoria, disse uma vez que “à medida que amadurecem, nossas lutas produzem novas ideias, novas questões e novos campos nos quais nos engajamos na busca pela liberdade”. Isso nos coloca em uma encruzilhada: agora sei que jamais podemos negar que essa liberdade está sujeita às sobreposições de características sociais, como gênero, classe e raça. É através desse olhar interseccional que se revelam as relações de opressão que impactam a subjetividade da mulher negra lésbica. E essas relações são complexas.

Mesmo que a mulher lésbica branca possa ser vítima de lesbofobia, ela também pode ser a opressora que invisibiliza a mulher negra lésbica. O machismo, o racismo e o lugar de “privilégio” que algumas mulheres ocupam na cadeia estruturante da sociedade pode fazer com que corpos como o meu, como o de Luana e tantas outras corpas e corpos travestigêneres negras sucumbam aos preconceitos, ao apagamento e as violações de direitos.

Apenas falar dessas questões de forma fria, apresentando dados sobre a violência que nos marca, sem que nós, lésbicas negras, estejamos incluídas e tenhamos voz ativa nessas discussões, eleva essa violência a níveis atrozes, pois nos coloca ainda mais em uma condição de objeto. Isso beira uma crueldade insidiosa, uma tentativa de nos manter em um ciclo de violência, marginalização e silenciamento.

Não podemos abordar a lesbofobia sem enfrentar as ações racistas. Não podemos falar das dificuldades de determinados grupos enquanto perpetuamos as dificuldades, marginalizações e silenciamentos que levam esses mesmos grupos à aniquilação. Caso contrário, continuaremos a ver grupos que defendem os direitos humanos destacando casos como Marielle, Luana, Paloma, Dandara e outras, enquanto esquecem de muitas outras que sofrem violência diariamente.

O que seria a solução então? Acredito no fortalecimento de todo o conjunto de mulheres vítimas dos mais variados tipos de opressão, para que assim seja possível fazer o enfrentamento, de forma coletiva, das desigualdades que nos atingem. E não apenas. É necessário ainda que toda a sociedade possa compreender e se engajar nessa luta. É necessário que fujamos do medo de não ser se a outra for. De acharmos que só se pode ganhar espaço negando o espaço da outra.

Neste mês da visibilidade lésbica, é fundamental enfrentarmos essas questões. Combater o lesbocídio negro exige uma abordagem multifacetada, que inclui a conscientização e a educação de toda a sociedade. Isso implica em confrontar o racismo, a homofobia, a transfobia e a lesbofobia de maneira interseccional, reconhecendo a importância de combater todas as formas de opressão.

Nesse sentido, estabelecer espaços seguros e inclusivos para mulheres lésbicas negras é uma prioridade. Isso demanda o fortalecimento de organizações e grupos de apoio que nos ajudem a compartilhar nossas experiências, encontrar solidariedade e adquirir os recursos necessários para enfrentar nossos desafios diários.

Demanda também políticas e leis para proteger nossos corpos da violência. Isso inclui a criminalização do preconceito e do ódio baseado na orientação sexual e na raça, assim como a implementação de medidas concretas para garantir nossa a segurança e bem-estar.

Exige, ainda, que nós, mulheres negras lésbicas, tenhamos nosso lugar de fala respeitado nessa discussão. Caso contrário, nunca teremos a chance de superar o apagamento e silenciamento histórico que nos aflige, de não sairmos do topo dos dados sobre violências e de finalmente sentirmos respeito ao falarmos sobre nós, por nós mesmas.

Como mulher negra lésbica, atualmente ocupando uma cadeira na câmara de vereadores, sei que não estou imune a essas situações. Por isso, acredito que a sororidade, o respeito mútuo e o compromisso com a inclusão são passos vitais para construir um mundo onde todas as mulheres, independentemente de sua orientação sexual e raça, possam desfrutar de seus direitos plenamente, sem obstáculos.

É claro que essa é minha luta, porque se trata da minha vida, mas como vereadora, não defendo apenas essas pautas. São lutas que se somam, pois acredito que todas, todos e todes merecemos um mundo melhor.

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