Uma visão sobre o sistema eleitoral dos EUA

O que causa maior estranheza a nós brasileiros é a possibilidade de que um candidato tenha mais votos populares e, mesmo assim, seja derrotado

Curiosidade e uma dose de dever professional (fui professor de Direito Constitucional durante 15 anos) fazem com que eu acompanhe a política dos EUA nos últimos 25 anos. E, a cada 4 anos, durante as eleições presidenciais de lá, sempre me deparo com a perplexidade e incompreensão dos brasileiros sobre o sistema que eles adotam.

Hoje, o mundo acompanha o desenrolar da disputa entre Donald Trump e Joe Biden e os brasileiros não são diferentes, aguardando a contagem de votos em Nevada, Arizona, Georgia, Pennsylvania e North Carolina. Mas, porque o sistema deles é tão “diferente”?

Antes de mais nada, convém fazer uma sintética recapitulação de como funciona a eleição presidencial nos EUA: 1) o presidente é escolhido por um colégio eleitoral; 2) o colégio eleitoral é formado por “eleitores” escolhidos nos estados; 3) cada estado tem um número de eleitores, equivalente ao número de deputados e senadores que o estado tem no Congresso – como todos os estados tem 2 senadores, mas o número de deputados varia, de acordo com a população, estados mais populosos, escolhem mais “eleitores”; 4) os “eleitores” são escolhidos a partir de uma votação popular (em que o comparecimento não é obrigatório, já que as pessoas podem, simplesmente, não se inscrever como eleitores) e, dos 50 estados, 48 adotam a regra “o vencedor leva tudo” (the winner takes it all), que determina que todos os “eleitores” do estado deverão votar no candidato mais votado na votação popular; 5) apenas 2 estados (Maine e Nebraska) seguem uma regra diferente, atribuindo parte dos “eleitores” ao candidato mais votado na votação popular e outra parte ao vencedor em determinados distritos (ou condados) mais importantes; 6) o funcionamento, propriamente dito, da eleição – desde a inscrição dos eleitores, modo pelo qual se vota e como se computa os resultados – é definido pelo próprio estado e varia de um estado para outro. Mas, como se chegou a esse sistema?

Em primeiro lugar, temos que considerar que as chamadas “colônias britânicas” na América do Norte tinham autonomia, uma em relação a outra. Diferente do Brasil Colônia, que tinha uma administração central, submetida à Portugal, na América do Norte, as “Treze Colônias” (North Carolina, South Carolina, Connecticut, Delaware, Georgia, Maryland, Massachusetts, New Hampshire, New York, New Jersey, Pennsylvania, Rhode Island e Virginia) tinham, cada uma, a sua administração e submetiam-se diretamente à Coroa Britânica.

Quando, em 1776, é “declarada” a independência, e após uma “guerra de independência” contra a Inglaterra, não surge um país chamado Estados Unidos da América, mas 13 novos Estados, cada um correspondendo à uma das antigas colônias. Esses estados assinam uma espécie de “tratado”, denominado “Artigos da Confederação e da União Perpétua” (Articles of Confederation and Perpetual Union) e criam o “Congresso da Confederação”, para tratar de interesses comuns.

Poucos anos depois, em 1787, representantes de 12 dos 13 estados reuniram-se na Convenção da Filadélfia (Rhode Island não enviou representantes) para avaliar soluções para os problemas que vinham enfrentando, uma vez que o sistema da confederação não atendeu às necessidades dos estados.

Como resultado, a convenção aprovou a “Constituição dos Estados Unidos da América”, o que teve, como consequência, a criação de um novo país – agora, sim, os EUA – e a extinção dos 13 estados anteriores, que passaram à condição de estados-membros. Sem se alongar, é importante dizer que a Constituição teve que ser ratificada por 9 estados, vindo a “valer” em junho de 1788, quando o nono estado (New Hampshire) a ratificou.

O objetivo da independência era se livrar da submissão a um poder externo (a Inglaterra) e criação de um governo central, a qual os estados se submeteriam, era um “mal necessário” e não poderia ser uma mera “troca de senhores”, de modo que os novos estados-membros se encarregaram de manter para si a maioria das atribuições, transferindo a esse novo governo que foi criado, apenas o que era imprescindível fazê- lo. É por essa razão que os estados-membros (que, hoje, não são mais 13, mas 50) tem leis próprias. Nesse texto não cabe analisar como essa distribuição de poderes (entre estado e governo central) veio se alterando ao longo desses mais de 2 séculos, bastando saber que eleições são um tema de competência estadual.

Segundo os registros históricos, o tema da eleição do presidente da República foi o mais difícil dos temas tratados na Convenção da Filadélfia, sendo decidido, ao fim dos trabalhos, após a rejeição de diversas fórmulas sugeridas. Acabaram adotando a eleição por um colégio eleitoral. Há certa controvérsia sobre os motivos que levaram a essa escolha, destacando-se o temor que os membros da convenção tinham da manipulação da vontade popular (em caso de eleição direta) e das disputas e intrigas parlamentares (em caso de escolha pelo Congresso). Assim, ficou definido que a eleição seria pelo colégio eleitoral, formado por representantes dos estados e escolhidos, em cada estado, segundo as regras por ele definidas. Registre-se que o modelo que predomina hoje, do “o vencedor leva tudo”, foi se impondo ao longo do tempo (até a Guerra Civil, entre 1961 e 1965, a Carolina do Sul ainda adotava a escolha dos eleitores pela assembleia legislativa estadual), sendo diversas as mudanças ao longo do tempo (a título de exemplo, Massachusetts adotou 7 sistemas diferentes durante as primeiras 10 eleições presidenciais).

O que causa maior estranheza a nós brasileiros (e, sem dúvida, alguma inquietação aos próprios estadunidenses) é a possibilidade de que um candidato tenha mais votos populares e, mesmo assim, seja derrotado. A principal razão para que isso aconteça é a adoção da regra “o vencedor leva tudo”, que permite que isso ocorra no caso de um candidato vencer em diversos estados, por uma pequena margem de votos, perdendo em outros, por uma grande diferença.

Note-se que, além de ser uma possibilidade real nas eleições que estamos presenciando – e tenha acontecido em 2016 –, só em uma outra oportunidade o candidato mais votado foi derrotado nas eleições (em 1876, Samuel J. Tilden recebeu 51% dos votos populares e 185 votos no colégio eleitoral, sendo vencido por Rutherford B. Hayes, que recebeu 186 votos no colégio eleitoral. Por outro lado, em 18 oportunidades, inclusive na eleição de George W. Bush, em 2000, nenhum candidato recebeu a maioria dos votos e, portanto, foi escolhido um presidente sem a maioria dos votos (embora os partidos Republicano e Democrata dominem o cenário político nos EUA, são diversos os partidos políticos existentes, além da possibilidade de candidaturas “independentes”, não vinculadas a nenhum partido – diante disso, a ocorrência de 3 ou mais candidatos, numa mesma eleição, pode levar alguém a ser eleito sem a maioria do votos populares).

Sobre alguns aspectos da eleição estadunidense, que, para nós brasileiros, parecem “anacrônicos”, como o voto em célula e a demora na apuração, ou “inseguros”, como o voto por correio, repito: cada estado tem autonomia para definir o sistema que vai adotar, o que leva a coexistirem procedimentos diversos. Essa aparente “anacronia” ou “insegurança”, talvez, não seja uma preocupação dos EUA, já que os estadunidenses acreditam na solidez das suas instituições políticas, que, de qualquer modo, funcionam, sem interrupções, há mais de 2 séculos.

Embora tenha algumas opiniões, não pretendo, nesse texto, fazer juízos de valor sobre o sistema eleitoral dos EUA. Reitero, apenas, que, com suas “peculiaridades”, esse sistema vigora há mais de 230 anos, sem golpes e interrupções, como as que frequentemente acontecem no Brasil.

Por fim, o que há de inédito no processo eleitoral que estamos acompanhando, é a postura do presidente-candidato Donald Trump. Na condição de candidato, e o que é pior, na condição de presidente que busca a reeleição, os seus questionamentos, sem qualquer fundamento fático, colocam em dúvida o processo eleitoral e servem, apenas, para fragilizar as instituições políticas e alimentar teorias da conspiração.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Uma visão sobre o sistema eleitoral dos EUA”

  1. MARCIA R SCHROEDER

    Esse, foi o primeiro ano, que consegui assimilar como funciona o processo eleitoral americano. Agora com essa explicação, ficou bem claro. Parabéns!!

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