“Sete denúncias” sobre a Covid-19 e o sequestro da ciência

Enquanto desmoraliza as instituições de pesquisa e ensino, a produtora Brasil Paralelo busca revestir-se de sua autoridade para usar a maior pandemia do século como arma na guerra cultural

Com um pouco menos de alarde que alguns de seus trabalhos anteriores, a Brasil Paralelo estreou, no final de junho, seu mais novo documentário, 7 denúncias: as consequências do caso Covid-19. Sediada inicialmente em Porto Alegre, hoje radicada em São Paulo, a empresa se consolidou, desde sua criação, como a mais robusta entre as empresas que, utilizando as plataformas digitais, e mais especificamente o YouTube, assumiram a linha de frente na chamada “guerra cultural”, peça fundamental da ascensão da extrema-direita e, no caso brasileiro, do bolsonarismo.

Embora não fale em nome de toda a direita, a Brasil Paralelo se filia ao seu lado mais ruidosamente militante e extremo, aquele próximo ao ideólogo Olavo de Carvalho. Não é diferente nesse 7 denúncias, que dialoga com as demais produções da empresa, embora assuma, de modo mais explícito que nos trabalhos anteriores, seu alinhamento ao bolsonarismo. No filme, esse alinhamento aparece sobretudo por meio de três recursos narrativos.

O primeiro, mais óbvio, é o texto. Embora alerte, no início, que não pretende se colocar contra a prevenção ao vírus, tudo que faz a peça é nos convencer de que os principais métodos de prevenção estão errados, como o distanciamento social e até o uso de máscaras. Nesse sentido, são inúmeras as associações entre regimes autoritários, do fascismo ao stalinismo soviético, e as medidas de prevenção. A chave para essa leitura generalista está numa noção muito difundida por esse naco da direita, que é a de “coletivismo”.

Olavo de Carvalho mantém grande influência no governo Jair Bolsonaro.

O segundo recurso é o audiovisual que, da trilha sonora à fotografia, reveste-se de um maniqueísmo didaticamente construído. Na sequência inicial, são exibidas imagens de lugares no mundo antes e depois da quarentena da Covid-19. As de antes, saturadas de tão coloridas. As de depois, escurecidas e descontrastadas. Uma das imagens dessa sequência é a de policiais acompanhados por um drone; ela também está consideravelmente esmaecida e, para reforçar o desequilíbrio de forças, os policiais estão representados de baixo para cima.

Esses componentes são fundamentais para o fio condutor do filme, que pretende ligar a autoridade científica ao poder dos governos e, consequentemente, aos abusos autoritários. Para fazer isso, o documentário recorre até às práticas eugenistas da Alemanha nazista. Um trecho particularmente aviltante dessa traquinagem retórica é o que associa quem “dedura” furador de quarentena aos kapos nos campos de concentração. Tudo, enfim, para conferir à direita o papel de defensora das liberdades individuais.

Daí o apelo inclusive a dramatizações, como a que, no início, mostra um sujeito que poderia ser tranquilamente confundido com um anarcopunk perseguido pela polícia. Esse componente é importante para compreendermos as chamadas “novas direitas”: contra um mundo dominado pelo politicamente correto e as mais variadas formas de contenção, estabelecidas inclusive pela Constituição de 1988, elas se apresentem como representantes de algo como a insurgência do “cidadão comum”.

No rol de inimigos das liberdades individuais, mesmo as universidades são apresentadas como parte de um suposto plano de dominação mundial a envolver entidades supranacionais, jornalismo profissional, governos e classe artística. Soa bizarro, mas esse é o tronco da estrutura narrativa olavista.

Então, segundo essa lógica, as universidades devem ser destruídas? A princípio, sim. Mas é um pouco mais complicado. Porque essa direita também sabe que o conhecimento científico tem legitimidade, e está disposta a reivindicá-lo.

E chegamos ao terceiro recurso narrativo.

Ao mesmo tempo em que desmoraliza as instituições tradicionais de pesquisa e ensino, no entanto, essa é uma direita que busca se revestir da autoridade da ciência. No filme, por exemplo, além do cenário em que são filmados os entrevistados, em frente a estantes repletas de livros, tudo como manda o figurino, o constante uso de citações a vencedores do Nobel ajuda a demonstrar que essa é uma estratégia que, performativamente, se coloca no campo da narrativa científica pra disputá-la.

Outra questão fundamental é a forma com que os entrevistados são apresentados. Todos eles, feita uma exceção, são introduzidos a partir da sua persona acadêmica – mesmo com carreiras discretas e o tempo todo se colocando contra as instituições, note-se. Exemplo cristalino é Luiz Philippe de Orleáns e Bragança, conhecido como “príncipe herdeiro” do que um dia foi a família imperial brasileira, mas legendado no filme como “mestre em Ciências Políticas pela Stanford University”.

Quando o “cientista político” Fernando Conrado diz, aos gritos, que a maior perda da quarentena é civilizacional porque as pessoas perdem habilidades motoras, ele fala a um público muito amplo, mas certamente não encontra respaldo na academia. Afinal, que congresso científico aceitaria um paper a partir dessa premissa? Mas ao se proclamar como um “cientista”, ele faz uso da autoridade científica para apresentar “o outro lado” de uma determinada questão, inclusive ao afirmar, a certa altura, estudar o tema das instituições supranacionais “desde 1999”.

Algo parecido ocorre com o jornalismo. Profundamente recriminada ao longo do filme, a imprensa reaparece periodicamente para fundamentar posições defendidas pelos seus autores. Exemplo são as manchetes de Veja e UOL, além de trechos de reportagens em vídeo das TVs Bandeirantes e Cultura (essa última estatal), na discussão sobre os impactos econômicos não da pandemia, mas, segundo o filme, do isolamento. Também foi ao jornalismo profissional que o documentário recorreu para subsidiar as controvérsias do estudo que parecia ter sepultado os testes com a cloroquina.

Paulo Freire.

A mesma imprensa que, segundo essas direitas, é mancomunada com o poder público e a ciência, também funciona para trazer legitimidade discursiva quando convém. São várias as manchetes que, no filme, repercutem pesquisas científicas ou pseudocientíficas que se adequam às intenções políticas de 7 denúncias. Em suma, faz-se do jornalismo e da ciência um uso oportunista e ideológico, bem ao gosto de uma empresa que já se valeu de artifícios semelhantes para defender uma leitura revisionista da ditadura militar, e atacar o educador Paulo Freire, para ficarmos em dois exemplos.

Nos últimos anos, a extrema-direita, permeada por alguns desses pressupostos, passou a pressionar por mais representação no debate público. Em nome do pluralismo, muitos veículos caíram na tentação de, ao abordar um tema, procurar especialistas “dos dois lados”. E muitas vezes a simples existência do diploma opera como credencial, mas nem sempre garante um discurso que não reproduza, não raro de modo bastante populista, o pior do senso comum.

Com isso não estamos a dizer que é tarefa simples resolver essa equação. Porque foi justamente essa falta de representação que levou às campanhas de desmoralização e ao fortalecimento dessas redes de “revisão” ou negação que proliferam nas redes sociais e outras plataformas digitais. Mas é justamente por isso que, para além do necessário exercício de checagem de fatos, essas produções precisam ser compreendidas a partir das suas estruturas e escolhas narrativas, e como elas dialogam com o social e o político.

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