Quem tem legitimidade para falar em nome da ciência?

Embora clara e absurdamente frágeis e conflitantes com as evidências da literatura, as visões e argumentos apresentados pelos negacionistas são colocados por eles como sendo absoluta e cristalinamente embasados por estudos científicos

O debate mais pulsante em nossa sociedade é o que diz respeito ao que estamos vendo no confronto diário, corpo a corpo, que travamos contra a pandemia da Covid-19, certamente o mais desafiador, até agora, no século XXI. Desde o início dos trabalhos, a CPI da Covid-19, no Senado Federal, vem servindo de palco para inúmeras falas de políticos, militares e médicos que defendem ou proscrevem “tratamentos precoces” e “imunidade de rebanho” como meios de combate a pandemia. Mesmo a vacinação, em seu conceito mais amplo e consagrado, como sendo a mais eficiente e segura estratégia universal de imunização, é analisada, por estes agentes, dentro de uma perspectiva falsamente dialética. Embora clara e absurdamente frágeis e conflitantes com as evidências da literatura, as visões e argumentos apresentados pelos negacionistas são colocados por eles como sendo absoluta e cristalinamente embasados por estudos científicos. Falar em nome da ciência nunca esteve tão presente na mídia ou mesmo em discussões caseiras. Parece, portanto, bastante oportuno aproveitar esse momento para que não só falemos de microbiologia, imunologia, epidemiologia e farmacologia, mas também possamos refletir a respeito das fronteiras da legitimidade para se argumentar em nome da ciência, esta entidade intangível para a grande maioria das pessoas. Este entendimento também parece ser garantidor da qualidade das informações que alcançam o grande público que, certamente, é o menos treinado para identificar as possíveis artimanhas interpretativas que podem corroer qualquer compromisso de um estudo com o mundo real.    

Em sociedades ditas arcaicas a nomeação e constituição do mundo social cabe ao poeta que, de certa forma, recebe um mandato social e a missão de nomear o mundo em momentos em que ele se torna inominável, ou seja, nos momentos mais difíceis, trágicos e de pouca compreensão para a pessoa comum. Em sociedades de maior influência religiosa esta função cabe ao profeta, que oferece, através de sua suposta sabedoria, alguma capacidade de interpretação aos enigmas apresentados pelo mundo. A legitimidade desses agentes sociais parece ser pouco questionada pelos respectivos membros de suas sociedades, particularmente quando falamos daquelas com forte carga dogmática. Vê-se aqui um efeito de consagração que confere ao profeta o direito de se levantar e dizer “Eis o que é preciso ver” (segundo Max Weber), indicando haver uma distinção sacralizadora daquela manifestação. Tamanha legitimação decai fortemente em sociedades menos pautadas pelo dogmatismo religioso e mais centradas em tradições políticas democráticas e com maiores níveis de escolarização. Muito embora, a influência religiosa, sempre muito capilarizada, envenena e questiona, constantemente, quaisquer outras iniciativas que busquem alcançar alguma soberania interpretativa dos problemas que afligem a sociedade. Há, ainda, uma outra influência em que a legitimação é uma instituição, num sentido ativo, em que é herdada parentalmente, tornando-se uma propriedade simbólica de grande eficácia, inclusive com imenso pareamento econômico, fazendo com que descendentes de famílias ricas se tornem, “por direito”, mais legítimos em suas manifestações. A sociedade brasileira consegue reunir, em suas camadas dominantes, representantes de todas essas instâncias sociais (certamente com quase absoluta ausência da influência do poeta) de forma a produzir uma eficiente simbiose personificada pela classe política cristã, economicamente favorecida, e com forte distanciamento da racionalidade cartesiana.

E é dentro deste ambiente social que se observa brotar discursos de um suposto combate à pandemia, mas com fortes contornos de indiferença, desprezo e perversidade contra a população, e em nome de um argumento que retroalimenta a consolidação de uma dominação política Bolsonarista. Exemplos desses discursos são a defesa da alta eficiência da “imunidade de rebanho” e do suposto “tratamento precoce”, este balizado na liberdade prescritiva do médico que não deveria ser tolhida, nem mesmo pela ciência, uma vez que a mera percepção pessoal já seria justificativa suficiente para referendar o uso deste ou daquele medicamento. A CPI tem nos oferecido doses cavalares desse tipo de indigência argumentativa, sempre trazidas, ou referenciadas por esses auto-proclamados “arautos” do conhecimento científico. 

Embora absurdos, tais discursos podem se dizer verdadeiros porque todo um grupo, ou todos os dominantes daquele grupo, o chamam de verdadeiro, estabelecendo a “verdade” para este grupo, garantindo para si o poder de verificação, portanto, de legitimidade. Em outras palavras, este é o efeito de convencimento de um discurso dentro de sua bolha social. 

Pode-se dizer então que, o que estamos assistindo, desde o início do dito processo de “politização da pandemia”, nada mais é do que uma crise de legitimidade do cientista perante a sociedade, uma vez que esta figura distante e misteriosa representa de maneira quase inacessível a dura e fria isenção metódica das evidências. Permeando essa luta simbólica pela definição social da verdade científica, podemos atribuir uma parcela importante de responsabilidade a outro fator que a favorece, que é a baixa escolarização (aqui também incluo a baixa qualidade/aproveitamento do ensino) da população brasileira que não consegue, mínima e soberanamente, avaliar metodicamente um conjunto de informações mais complexo. Concomitantemente, podemos identificar também que os cientistas, de maneira geral, assumem um papel reativo frente às intempéries vividas pela sociedade, atuando com uma vocação quase que consultiva, quando convocados ao debate. Entretanto, o momento político atual do Brasil encerra-se num governo que inequivocamente repele o conhecimento científico, assim como os seus emissários, produzindo um ambiente aversivo e enclausurante aos cientistas que perdem, em sua maioria, qualquer oportunidade de produzir alguma contribuição para as políticas públicas ou mesmo para o debate público. Há também um outro flanco complementar de ataque à ciência e que é sustentado por políticos de bancadas religiosas, “homens de fé”, que se apresentam como representantes autodeclarados de um deus criador, outorgando ao divino uma responsabilidade intransferível de cura.

Essas circunstâncias são, pelo menos em parte, responsáveis pela pavimentação de um cenário caótico liderado pelos negacionistas transvestidos de políticos, médicos, jornalistas e empresários que, nesse confronto, assumem uma retórica de representatividade do conhecimento científico com um único objetivo de manutenção de uma hegemonia Bolsonarista. 

Assiste-se aqui a uma estratégia que consiste em desacreditar e desqualificar pesquisas e pesquisadores, porém com um objetivo que vai além da dominação do campo, e sim a sua própria destruição. Fundamentalmente, uma luta simbólica entre pretendentes e dominantes é instrumentalizada por ações consagradas socialmente e de boa previsibilidade como, por exemplo, dizer aos dominantes que eles não agem conforme os valores em nome dos quais dominam. Outro esquema de luta opõe os velhos aos jovens, via de regra com uso de argumentos de que os primeiros se tornaram obsoletos, enferrujados e rotinizados, atacando, portanto, a base do capital do próprio campo. É isso que normalmente ocorre no interior dos campos sociais específicos e estruturados, como é o caso do campo acadêmico ao qual orbita a ciência. Entretanto, a luta a que estamos presenciando e participando aqui possui contornos um tanto distintos, uma vez que se verificam claras invasões por parte de outros campos, muito distintos (político, religioso, econômico) sobre o campo acadêmico. Esse fenômeno de concorrência tem como palco a mídia e a sociedade, produzindo uma grande incerteza sobre o ordenamento das informações, por exemplo, a respeito das vacinas, do uso de máscaras, das medidas de distanciamento físico, etc. O resultado final dessa luta simbólica parece ser o de definição de ciência, portanto, automaticamente, de legitimidade para se falar em nome dela. A defesa da legitimidade do capital científico pelos cientistas parece ter escalado um novo patamar, exigindo agora a adesão de uma postura mais combativa e, de certa forma, incômoda para estes agentes que precisam fazer valer o seu capital, transpondo-o para outros campos sociais, fenômeno esse sempre muito difícil e por vezes inócuo. Mas as redes sociais e a internet, como um todo, parecem produzir novos palcos que podem ser garantidores de algum sucesso dessa empreitada, principalmente junto às novas gerações que se encontram em formação e não são refratárias ao conhecimento.   

Sobre o/a autor/a

4 comentários em “Quem tem legitimidade para falar em nome da ciência?”

  1. FABIAN CALIXTO FRAIZ

    Prof. Marcelo M. S. Lima
    Foi um prazer a leitura de seu texto. Estamos carentes de reflexões e discussões consistentes e inteligentes.
    um abraço,

  2. Muito boa a análise. Nestes tempos em que a “autoridade” do conhecimento é questionada continuamente. Na área médica isso é muito preocupante.

  3. Texto extremamente importante e necessário nesses tempos em que todos têm opiniões e pensamentos sobre alguma coisa, mesmo que sem o conhecimento técnico sobre. Parabéns!!

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