O náufrago

Em tempos de coronavírus, a visão de um artista isolado do público

Comecei 2020 cheio de expectativas. Não imaginava que elas funcionariam como os passaportes paraguaios de Ronaldinho Gaúcho e de seu irmão. Eu até entraria tranquilamente em 2020, só não sabia é que ficaria em confinamento.

Sou ator e humorista, entre outras coisas que sei fazer, como aqueles pratos que juntam tudo numa panela só e matam a fome do Sudão e de Uganda em um único almoço. Já fiz muito sucesso. Lotei teatros na casa dos milhares de espectadores, já fiz televisão, fiz cinema e sou amigo de muitos famosos. E dai? O que é que eu faço com isso? Hoje, muito pouco. Mas vamos em frente estou fazendo mais rodeios que Barretos. Em dezembro do ano passado, decidi que ia estrear 2 espetáculos novos durante o Festival de Curitiba: O Náufrago e O Elevador, que depois mudei de nome para O Contador. Ia ter de resolver esse problema ainda, pois a divulgação do festival já havia saído. Mas isso foi adiado pra depois da pandemia. Em dezembro também, eu ainda não sabia, o tal novo corona vírus começava sua carreira com mais evidência em Wuhan, na China. Ele era ainda um fenômeno local, mas como o K-Pop sul coreano, ele foi se espalhando. As pessoas não levaram a sério no começo e tanto o K-Pop como o coronavírus se espalharam pelo mundo.

Janeiro e fevereiro foram meses típicos de um ator e humorista que não está tão em evidência atualmente. Procurar trabalhos e, com o resultado, pagar as contas. Afinal na luta da vida, a única certeza é que, no final, o boleto vence. Tempos difíceis. E ruim não definiria janeiro. Péssimo talvez. Em fevereiro sim as coisas ficaram ruins, o que já foi uma boa evolução. Mas em março, o universo parece que me percebeu. E março realmente prometia. Iria gravar a segunda temporada da série Irmandade da Netflix, estrearia minhas duas peças no Festival de Curitiba, tinha shows corporativos agendados em São Paulo e Curitiba e outros em bares. Mas o universo que conspirava a meu favor pegou 20 dias de férias, que já estavam acumulando, e não deixou avisado o substituto que eu ia me dar bem naquele mês. Em um breve resumo, as notícias foram caindo como geada no meio da pelada no campinho. O Festival de Curitiba foi adiado pra setembro, os shows nos bares foram cancelados, a série da Netflix foi adiada até que as pochetes saiam de moda novamente e os shows corporativos foram cancelados até o meu Palmeiras ganhar um mundial. Eu sou um cara calmo. Acredito que o humor é acima de tudo um modo de vida. Tudo tem um motivo, um porquê. Reagi a tudo aquilo com mais tranquilidade do que o Dalai Lama e o papa Francisco tomando chá com a Rainha da Inglaterra. Isso até olhar o saldo da minha conta. Mas o mesmo universo que tinha tirado férias, voltou e resolveu dar um mãozinha. Uma das empresas que tinha me contratado, decidiu depositar o pagamento mesmo assim. A SIG Combibloc, uma fabricante de embalagens longa vida a quem devo o bote salva-vidas nesse naufrágio – e a quem também devo o melhor show corporativo que farei na Cúpula do Trovão do mundo Mad Max, que virá pós-coronavírus.

A quarentena

Em um breve resumo O Náufrago é uma comédia sobre um cara que está há 100 dias à deriva no mar. As correntes não o levam à terra firme, mas até a grande ilha de plástico do Pacífico. E além dos raros peixes que consegue pescar, agora ele conseguirá sobreviver se alimentando do lixo do mundo.

Estou há alguns anos vivendo bem isolado, quase como um ermitão ou um crítico de cinema. Então O Náufrago fala justamente desse isolamento, além de fazer uma crítica aqui e ali a esses 7 bilhões de habitantes, segundo a Polícia Militar, 8 bilhões segundo o Datafolha. E uns 10, segundo os desorganizadores do evento. O que não imaginava é que os filmes de distopia falando sobre o fim do mundo da prateleira de ficção das falecidas locadoras, estavam mudando de gênero e se identificando agora como documentários. Eles eram documentários presos num corpo de ficção.

E falando em locadoras de vídeos, nesses dias de quarentena, ando me sentindo como uma fita de videocassete, um disquete, uma lista telefônica. Um ator sem publico é quase inútil. Ou tão útil quanto um afinador de teremin, em uma cidade sem teremins. O teremin, a quem não sabe, é o primeiro instrumento eletrônico do mundo, que leva o nome de seu criador e como característica principal pode ser tocado, sem ser tocado. Então ele é, por definição, o instrumento ideal nesses tempos de coronavírus. Mas voltando a falar da minha inutilidade. Sem o público, o ator fica sozinho. Sozinho mesmo, pois as determinações são para evitar aglomerações. Então, serão semanas, talvez meses de monólogos na sala, na cozinha, no banheiro. Com esse vírus fica decretado o fim ou a suspensão do “grande elenco”. Aquele momento em que os atores menos famosos tinham um pouco de grandeza na matéria de jornal. Sempre preferi fazer parte do grande elenco que do “e outros”, que sempre pareceu que eu era um fantasma num filme com a Nicole Kidman. Além de ator e humorista, também escrevo. Quem vai mandar na solidão da minha quarentena será o escritor que vai escrever do agora para as pessoas do futuro. Para aquelas que assistirão teatro e que terão de novo o privilégio de ir e vir.

Agora, e por não sei quanto tempo, eu não terei o público e o palco perdeu um pouco o sentido. Agora, e por não sei quanto tempo, estarei como o meu náufrago que saltou da ficção para a minha realidade e transformou meu apartamento em um bote à deriva nesses dias, à procura de um sentido ou um bom vento. Mas não sou o único e isso sempre conforta. Sobreviveremos como um Robinson Crusoé pra contar a história de um tempo sem abraços, beijos e sem público.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima