“Meu conselho para o meu filho é correr e se esconder”

Troque filosofia por empreendedorismo nas escolas e os jovens jamais duvidarão da foto do papa de jaqueta branca

A frase que faz parte do título deste artigo foi falada pela Andréa, a autora desse artigo, quando conversava com o outro autor sobre o papel das plataformas digitais na ascensão dos casos de jovens portando armas, que entram em escolas e creches para matar pessoas. E saber exatamente como chegamos ao ponto em que esse tipo de evento acontece diariamente é praticamente impossível, mas com certeza podemos identificar alguns “pãezinhos” nesse caminho (como fizeram João e Maria).

Nesse sentido, em Novembro de 2022, foi publicado um artigo acadêmico, onde o autor desse artigo, junto com os Professores Francis K. Meneghetti e Jurandir Peinado (Ambos da UTFPR), observaram que nove em cada dez pais, mães, tutoras e tutores de crianças não leem os termos de consentimento das plataformas digitais, sejam redes sociais, jogos ou streamings, e muitos nem sabem onde encontrar esses termos. Além disso, na etapa qualitativa da pesquisa, esses pais e tutores, e essas mães e tutoras, acabam se responsabilizando pelo fato de terem que trabalhar, especialmente durante a pandemia, e autorizarem um uso mais intenso dessas tecnologias pelas crianças.

No entanto, nenhuma das quase seiscentas pessoas que participaram da pesquisa mencionou uma eventual responsabilização das plataformas sobre a gestão do conteúdo que é postado ou de quem tem acesso a ele, ou pelo fato de que seu “produto” pode viciar crianças. Observamos que há um silenciamento da sociedade em relação a levar a responsabilidade para quem viabiliza a produção e disseminação do conteúdo.

E quando falamos que a plataforma é responsável, isso é baseado no funcionamento das plataformas, que lucram a partir de duas simples estratégias, efeito de rede e geração de valor (Cusumano, Gawer, & Yoffie, 2019). O efeito de rede significa que as plataformas conectam usuários de acordo com seus interesses, em uma lógica de match. E a geração de valor resulta do efeito de rede, com a plataforma acumulando quantidades pornográficas de dados quantitativos e qualitativos sobre os usuários, para venderem um serviço de direcionamento de propagandas de bens e serviços.

Com isso, é possível afirmarmos que 1) as plataformas digitais definem unilateralmente seus termos de consentimento e políticas de privacidade, 2) sem qualquer tipo de verificação sobre sua veracidade, 3) com o objetivo de conectar usuários por meio da identificação de seus interesses e fornecimento de conteúdo baseado neles.

Mas se pais, mães, tutoras e tutores começarem a ler os termos de consentimento, essa pode ser uma solução? Não, de forma alguma! Os termos de consentimento são difíceis de serem encontrados, quando são encontrados, muitos têm volumes gigantescos de páginas (chegando a mil páginas em alguns casos) e termos incompreensíveis para a maioria das pessoas. Ou seja, trata-se de um documento para não ser lido, ou, como dizem os pesquisadores Nick Couldry e Ulisses Mejias (2020), os termos de consentimento são documentos semelhantes ao Requerimento espanhol de 1513 (um documento escrito e lido em espanhol por conquistadores a indígenas recém descobertos, que não compreendiam o espanhol, e que foram repentinamente informados de que suas terras não pertenciam mais a eles, mas na realidade ao líder espiritual dos exploradores, alguém chamado de papa. No mesmo documento os indígenas eram informados que, caso não se submetessem voluntariamente a essa bizarra ordem, com a ajuda de Deus, seria feita a guerra e as esposas, filhas, filhos seriam escravizadas e escravizados e vendidos, e os espanhóis fariam todos os danos possíveis àqueles indígenas).

Apesar disso, pensamos que, ao lerem os termos de consentimento, em alguma medida, seria possível que as pessoas percebessem o grau de manipulação e expropriação de dados das crianças ou teriam dúvidas sobre o funcionamento das plataformas E, assim, começariam a cobrar de autoridades e das próprias plataformas maiores esclarecimentos sobre seu funcionamento. Mas até o momento nada disso aconteceu.

O segundo pãozinho do nosso caminho em direção ao atual momento da sociedade plataformizada diz respeito à ausência de controle e legislação sobre as plataformas digitais. Mesmo havendo leis sobre o tema, como a LGPD e o Marco Civil da Internet, suas medidas não conseguem atingir todas as plataformas e nem todo o conteúdo produzido e compartilhado. Além disso, se uma pessoa pública, como um vereador, um senador, ou um jogador de vôlei, consegue produzir e/ou compartilhar uma notícia falsa ou conteúdo de ódio com seus milhões de seguidores, sem sofrer qualquer tipo de sanção efetiva, como imaginar que centenas de milhares de mensagens propagadas em grupos no país todo serão verificadas previamente? É preciso pensarmos na operacionalização dessas plataformas, que são desenvolvidas para não serem controladas.

E o terceiro pãozinho está relacionado à educação de crianças, pais, mães e sociedade em geral. Observamos em novembro de 2022 um artigo neste mesmo jornal sobre a dissonância cognitiva (Sonem, 2022), e como as redes virtuais são capazes de reforçar determinados distúrbios e levar as pessoas a comportamentos usualmente caracterizados como esdrúxulos (como defender fadas e mitos). Nesse sentido, nosso terceiro pãozinho está relacionado à necessidade de educarmos criticamente as pessoas, para refletirem e questionarem aquilo que lhes é informado por meios virtuais.

É claro que a educação financeira é importante nas escolas (como tanto pregam alguns governantes apaixonados pelo necrocapitalismo travestido de neoliberalismo). Mas se continuarmos substituindo as cargas horárias de disciplinas como sociologia e filosofia por empreendedorismo e educação financeira nas escolas, podemos acabar com uma multidão de jovens que acreditam que os bancos salvam e as fadas existem, mas duvidam que o papa vestido de jaqueta branca seja uma manipulação. E essas mentes são facilmente manipuláveis.

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