Deus, uma alternativa boa?

Deus só serve, quando nos faz melhores, quando nos ajuda a respeitar os outros, a cuidar do mundo e a celebrar a vida em suas múltiplas e variadas facetas

Diante das guerras que nos assolam e dos terrores impetrados contra seres humanos e não-humanos ao redor do mundo, fico me perguntando o que anda fazendo Deus que não põe ordem nesse pandemônio. Ligo a TV ou abro os jornais e aí estão todas as nossas desgraças cotidianas (muitas das quais praticadas em nome das religiões e pelos próprios religiosos), como para provar que Deus não tem sido uma alternativa boa para a humanidade em termos éticos. Ou a gente não está se entendendo sobre o que Deus significa ou Deus anda falhando bastante com a humanidade. Embora eu ainda não tenha encontrado uma resposta exata sobre esse tema, tenho pensado muito no fato de que Deus só serve quando ele é compreendido como uma espécie de alternativa ao problema do mal.

Porque precisamos de Deus, afinal? Ora, porque o mal existe. Recorremos a Deus justamente quando a experiência mais terrível da maldade, em suas mais variadas facetas, se abate sobre nós, enquanto indivíduos, mas também enquanto sociedade. Ora, o mal é quase sempre resultado de ações humanas. E é diante de nós, das nossas potencialidades mais terríveis, que a imagem de Deus se apresenta como uma lembrança e ao mesmo tempo uma certeza: nós não somos assim ou, se somos, também somos capazes de contrapor as forças da moralidade aos impulsos do mal que nos habitam. Sendo assim, um espécie de memória do bem, Deus lembraria ao homem aquilo que ele é.

Eis o que significa, de fato, ter sido feito à imagem e semelhança de Deus: ser igual a Deus significa ser bom, ou pelo menos, ter capacidade para bem. E aí, que Deus passa a exercer um potencial ético de primeira grandeza. Deus se coloca ao alcance de todos, na medida em que buscar a Deus é, simplesmente, buscar o bem. É negar a força do mal. É reivindicar e redescobrir uma outra essência do ser humano, justamente ali, onde ela parece mais negada pelas práticas cotidianas da maldade.

Parece estranho e talvez soe esquisito aos ouvidos de quem tem fé, mas a utilidade de Deus será tão mais evidente quanto mais forte ele se apresentar como alternativa para o mal, como uma alternativa positiva. Buscar a Deus é buscar o bem e agir conforme o bem é o maior testemunho de Deus. Não foi esse justamente o testemunho de tantos e tantos homens e mulheres entre os quais, está a filósofa e mística Simone Weil, que fez de sua vida uma luta contra o mal revelado nas condições desumanas da vida dos operários europeus vitimados pelo sofrimento.

Simone não via Deus a não ser aí, na vida mesmo desses homens e mulheres, em seu sofrimento, em sua dor. Muito fora de um cristianismo institucional ela encontrou um Deus mediado pela humanidade, pela dor humana, pelo desespero humano. Deus será sua dose de sabedoria e, talvez por isso, ela afirmou que “uma ciência que não nos aproxima de Deus de nada vale”. Albert Camus, de quem Simone foi amiga e que publicou as suas obras, se encantou com a coragem dessa jovem judia que em sua busca por Deus se encontrou com as dores do homem e, diante de tantas impurezas, sucumbiu, aos 34 anos, morta de fome, movida pelo desejo, cheia de afetos.

Com Simone Weil, compreendemos que a intensidade do mal coloca sempre em xeque a existência de Deus. Onde está Deus diante do mal? Por que ele não o evita? Seria a existência do mal justamente uma prova contra Deus? Uma prova da sua inexistência? Uma prova da sua ineficácia? Um testemunho cabal da sua impotência? Deus se torna aos poucos, uma perplexidade muito antes de ser uma inquietude, porque o mal nos faz questionar a bondade de Deus. Não à toa, as religiões até agora têm se arvorado o direito de sustentar uma saída contra o mal: sem religião viveríamos no estado primitivo da guerra e da violência descrito por Hobbes.

Sem religião – dizem os religiosos – não restaria quase nada da humanidade. Uma hipótese cada vez mais insustentável, parece, quando contraposta ao problema do mal praticado em nome da religião. Nos atentados de Paris, de novembro de 2015, gritaram o nome de um Deus no salão lotado da Bataclan. Contou-se, depois disso, mortos e feridos às centenas. O mesmo parece ter ocorrido em outros tantos atentados e guerras ao redor do mundo, em todos os tempos. Há que se dizer, sim, que esse não é o tom de todos os religiosos. Há que se separar os fundamentalistas dos religiosos, porque os primeiros pervertem as mensagens espirituais de suas religiões. Mas não seria o fundamentalismo uma resposta cruel ao esvaziamento dos sentidos?

O filósofo esloveno Slavoj Žižek também anda às voltas com esse problema e, diante do mal, se pergunta sobre a atitude dos crentes. Uma pergunta que se dirige muito mais à religião do que a Deus. Mas que ele formula na hipótese mesmo do ateísmo: não ter Deus não seria, nesses casos, uma saída benéfica? Obviamente, os requintes psicológicos nos induzem a concordar com tal afirmação quando estamos diante de exemplos como esse de Paris, aquele de Nova Iorque e tantos outros que se dispersam nas sociedades contemporâneas.

Žižek lembra o niilismo moral de Dostoievski (replicado por Nietzsche), para quem a ausência de Deus libera o homem de todas as amarras morais. Mas ele também está atento ao fato de que, no caso do terrorismo, é justamente a existência de Deus que legitima todas as barbáries: porque Deus existe, tudo podemos.

Mas foi Hans Jonas, no seu famoso texto “O conceito de Deus depois de Auschwitz”, que nos brindou com uma das mais instigantes – e sérias – reflexões sobre o assunto: Deus, afinal, encolhido em seu poder, sofreu junto com os milhões de judeus vítimas dos campos de concentração que deram, em cada rosto, concretude ao mal radical que se abate sobre a sociedade humana – o mal da indiferença, o mal da hostilidade, o mal da permissividade de quem sente-se como Deus. Eis a petulância máxima do ser humano. É ela que nos impede de ver o que precisa ser visto: Deus só serve, quando nos faz melhores, quando nos ajuda a respeitar os outros, a cuidar do mundo e a celebrar a vida em suas múltiplas e variadas facetas.

Sem isso, Deus nunca será uma alternativa boa.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima