Curitiba precisa ir além da inteligência e ter alguma sensibilidade

De repente me vi intimado pela Prefeitura a fazer uma obra em minha casa com meu próprio dinheiro>Não tinha como fazer e a partir daí só recebi multas

Curitiba recebeu recentemente o prêmio de Cidade Mais Inteligente do Mundo de 2023 na categoria “Cidades”, pelas políticas públicas, ações e programas de planejamento urbano inteligentes da Prefeitura de Curitiba voltados ao crescimento socioeconômico e à sustentabilidade ambiental.

Particularmente, eu fico feliz com isso. Adotei essa cidade há décadas como lar e gosto muito de viver nela.

Entretanto, minha felicidade não é plena, pois ao mesmo tempo que a cidade se destaca internacionalmente por suas boas práticas, ainda mantém práticas coloniais que ofuscam o brilho das conquistas alcançadas. Eu senti na carne, ou melhor, no bolso, uma dessas práticas que não estão alinhadas com a proposta de cidade inteligente.

Explico melhor.

Ficou na memória coletiva a chegada da família real em 1808, quando 10 mil casas foram pintadas com as letras “PR” (referentes ao Príncipe Regente), abreviatura que significava na prática que o morador teria que sair de sua casa para dar lugar à realeza. A sigla “PR” ficou popularmente conhecida como “Ponha-se na Rua”. Uma medida autoritária, uma mazela representativa de sua época.

Entretanto, dois séculos se passaram e ainda encontramos medidas similares. No caso de Curitiba, seu código de obras (Lei 11.095/2004) traz em seu Art. 103 o que ficou conhecido como a “lei do canto chanfrado”:

Canto Chanfrado

Art. 103 Nas construções em terrenos de esquina, para efeito de garantir a visibilidade, será exigida a execução de canto chanfrado ou outra solução técnica equivalente.

§ 1o O canto chanfrado deverá ter um comprimento mínimo de 2,50m (dois metros e cinquenta centímetros).

§ 2o A juízo do órgão competente, o canto chanfrado poderá ser dispensado, desde que fiquem garantidas as condições de visibilidade.

Em que pese a boa intenção do legislador, visando melhorar a visibilidade no trânsito da cidade, faltou sensibilidade para que o proprietário do imóvel fosse considerado nessa ação de boa vontade com a ordem pública. Afinal de contas, a casa das leis é representante do povo.

Normalmente, nos damos contas dessas questões legais quando somos atingidos de alguma forma. E foi o que aconteceu.

No dia 12/08/2022 fui procurado por dois funcionários da prefeitura de Curitiba, que me disseram que a prefeitura planejava realizar uma alteração viária na região de um imóvel do qual sou proprietário. Eles me entregaram uma notificação onde, sob pena de multa, eu deveria providenciar a execução de um canto chanfrado no muro do imóvel num prazo de 30 dias. Além do recuo de dois metros e meio do muro, a notificação determinava que eu deveria “recuperar o passeio na área externa do chanfro, conforme padrão existente no local, de forma a melhorar a circulação e garantir a segurança de pedestres, em razão da alteração do sistema viário, em cumprimento do artigo 103 da lei 11095/2004”.

Tomado de surpresa, pedi que o funcionário da prefeitura me explicasse o que precisava ser feito. Após a explicação, perguntei se haveria alguma compensação em meu IPTU, posto que com a obra eu perderia alguns metros quadrados do imóvel e que isso deveria ser computado. A resposta foi negativa. Resignado, respondi que compreendia a necessidade da alteração em benefício do tráfego, e então perguntei se a prefeitura pagaria pela obra. Mais uma vez, a resposta foi negativa, eu é quem deveria arcar com os custos. Tentei argumentar com o funcionário, alegando que a prefeitura já estava pagando a empreiteiras para realizar as obras da alteração viária, e provavelmente a obra do canto chanfrado seria uma fração insignificante no orçamento da prefeitura, e complementei que meu caixa pessoal não estava programado para assumir uma obra em 30 dias. O funcionário foi muito educado e me disse que eu poderia recorrer. E foi o que fiz.

Realizei um orçamento (aproximadamente R$ 5.000) e encaminhei por e-mail ao setor de fiscalização da prefeitura, informando que não tinha condições financeiras de arcar com a despesa no prazo determinado e solicitando a possibilidade de a prefeitura realizar a obra às suas próprias expensas e, neste caso, qual a previsão de realização da obra. Obtive uma resposta negativa, e como não executei a obra nos 30 dias, recebi uma multa de R$ 244,31. Recorri da multa através do protocolo eletrônico da prefeitura, solicitando o cancelamento da autuação recebida e mais prazo para que pudesse viabilizar financeiramente realização da obra. Novamente recebi uma resposta negativa e paguei a multa.

Como ainda não tivesse realizado a obra, recebi uma segunda multa, esta no valor de R$ 516,90. Entrei com novo recurso, solicitando o cancelamento da autuação, considerando que a obra demandada já estava em andamento. Meu apelo foi que, como cidadão curitibano, não tivesse que arcar com mais esse ônus, pois os custos da obra foram altos e já havia pago a primeira multa por não ter conseguido realizar a obra dentro do prazo inicial, mesmo tendo solicitado mais tempo para sua execução. Novamente, meu pedido foi indeferido e paguei essa multa também.

Faltam palavras (ao menos publicáveis) para descrever minha sensação de impotência frente a uma máquina administrativa que executa ordens sem considerar as pessoas. A alteração do tráfego visou o bem público, as empreiteiras envolvidas foram devidamente pagas pelas obras no espaço público, mas a parte do espaço privado que se tornou público foi custeada apenas por minha pessoa, que na prática perdi um pedaço do meu imóvel sem ressarcimento pela prefeitura nem qualquer abatimento em meu IPTU.

Bem sei que minha queixa é isolada e provavelmente não passará disso, pois imagino que o volume de casos como o meu seja pequeno, sem peso para repercussão midiática. Mas acreditem, individualmente, posso garantir que R$ 6.000 (obra e multas) causa um impacto significativo no orçamento doméstico. Imprevisto e indesejado.

Romanticamente, meu sonho é que um jurista ou um vereador abençoado se sensibilize por essa causa, auxiliando a reverter essa incoerência e sensibilizando tanto a câmara de vereadores quanto a prefeitura. É importante alterar a lei do canto chanfrado para que aqueles que tem propriedade em esquina não sejam duplamente penalizados, perdendo parte do terreno e ainda tendo que pagar pela obra. E é igualmente importante reembolsar todos aqueles que, assim como eu, tiveram que arcar financeiramente para tornar o trânsito da cidade mais inteligente.

Enfim, é preciso mais que inteligência. É preciso bom senso e coração, sensibilidade.

Não faz sentido o cidadão ser responsabilizado para custear obras de benefício público, recolhemos impostos para isso.

Da forma como está é fazer cortesia com o chapéu alheio. Não esperava isso de uma cidade inteligente.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Curitiba precisa ir além da inteligência e ter alguma sensibilidade”

  1. Gostaria de saber,onde está a cidade mais interessante do mundo?
    Prefeito vive em uma bolha?
    Meus filhos estuda em escola precária, servidores mau remunerados,
    Muita propaganda, pouca ação, as ruas do centro da capital esburacada, calçadas irregular.

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