A luta de Marília Mendonça não era contra a balança, era contra o patriarcado

A grandeza de uma das vozes mais importantes do feminejo está na empatia e na representatividade que ela nos oferece

Para falar de Marília Mendonça, preciso falar da minha história, com licença. A minha namorada é maestra e defende que nós somos o nosso corpo. Eu costumava respondê-la demarcando a nossa diferença: eu me considerava uma pessoa “mental”, estereótipo que combina com o meu trabalho de jornalista. Até o dia que ela me disse que a cabeça que pensa e os dedos que escrevem também fazem parte do corpo.

Fiquei pensando um bocado nisso enquanto lia as memórias de Rebecca Solnit, no mês passado. A escritora, que é um cânone da literatura feminista, conta que na juventude era uma menina muito magra, e que o patriarcado empurra as mulheres para a magreza como se um corpo magro existisse – e incomodasse – menos. 

Eu já me senti e volta e meia ainda me sinto incômoda a ponto de querer sumir, mas sou uma mulher gorda. Há quem diga que a gordura funciona como escudo de proteção, o que não saberia dizer se é o que se entende por verdadeiro, assim como não sei dizer se a leitura de Rebecca Solnit está fundamentada em alguma teoria validada pelos intelectuais acadêmicos. O que sei é que ambas as lógicas parecem resultar do mesmo tipo de opressão.

O motivo para eu ter me desconectado do corpo e ter depositado todo o meu valor no meu intelecto tem a ver com a maneira como ele foi discriminado desde que me entendo por gente. Durante boa parte da vida, eu não era afirmada como bonita (a não ser de rosto), mas sim como inteligente. Por isso reafirmava o que entendia ser o meu melhor.

Isso começou a mudar nos últimos anos, sobretudo por conta da bênção da representatividade. Com a popularização do feminismo, eu comecei a questionar os estereótipos de beleza, ao passo que mulheres gordas como Marília Mendonça começaram a ganhar mais espaço na mídia. Eu via que o corpo dela era assunto de forma pejorativa nos tablóides, mas também sabia que era dela uma das principais vozes do feminejo, o movimento que tirou o sertanejo das mãos dos homens. Uma musa esperta: enquanto cê tá indo, eu tô voltando.

Em outras palavras, eu via essa mulher brilhar e sabia que podia brilhar também. Hoje, eu me acho bonita e inteligente e sei que essas não são características oposicionais. Eu tento não me desligar do meu corpo como se fosse motivo de vergonha, como se tivesse de me proteger, como se não fosse meu. É ele que sustenta a minha luta.

O feminismo de Marilia Mendonça

Eu não sou especialmente fã de Marilia Mendonça, mas ouvi uma música específica centenas de vezes na reta final de um relacionamento abusivo, quando comecei a me dar conta de que aquele era um ciclo vicioso de manipulação e fui buscar ajuda na terapia.

“E todo esse caminho eu sei de cor

Se eu não me engano agora vai me deixar só

O segundo passo é não me atender

O terceiro é se arrepender

Se o que dói em mim doesse em você…”

Marília Mendonça

Essa pessoa, de fato, deixou de ser importante. Obrigada, Marília Mendonça. Mas não só por isso. Obrigada, também, por cantar sobre tabus como infidelidade, rivalidade feminina e prostituição e nos tornar tão íntimas desses assuntos que nos causam sofrimento. Obrigada por nos oferecer o que há de mais revolucionário: empatia.

Antes que comentem, lembro bem que ela disse que não se considerava feminista, pois o feminismo “diminui” as mulheres. Penso que essa é uma visão deturpada do movimento, mas também reconheço que é bastante popular, e que uma ideia popular não é uma ideia subalterna. Muitas mulheres que estão do nosso lado têm dificuldade de se apropriar do termo, e esse é um indicador de que precisamos acessibilizar o feminismo, e não rebatê-las com teoria academicista. Como diz um amigo: política se faz com o contraditório.

Eu também acredito que política se faz na vida cotidiana, com diplomacia, e era isso que Marília Mendonça fazia. Sua luta não era contra a balança, era contra o patriarcado. Sua voz, sua arte, sua representatividade são as verdadeiras marcas de sua existência.

Sobre o/a autor/a

5 comentários em “A luta de Marília Mendonça não era contra a balança, era contra o patriarcado”

  1. Elzinir Maria Knopfle

    Parabéns pelo seu texto, li e gostei. Interessante, eu nunca gostei a expressão ” feminismo/ feminista” e não sabia muito bem porquê. Sim, essa expressão parece que diminui algo. Ora eu sou ser feminina e quero respeito na minha maneira de ser, nas minhas escolhas, na minha forma de ver e apreciar a vida, quero direitos humanos, fim.
    Um grande abraço,
    Elzinir

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