O ativismo poético de Rebecca Solnit me representa

“Recordações da minha inexistência" dá corpo à invisibilidade feminina

Quando eu tinha 15 anos, minha mãe se sentiu confiante o bastante para me deixar sair de ônibus sozinha pela primeira vez. Segui a rota pré-planejada à risca: embarquei no Bairro Novo B e desci no terminal do Sítio Cercado, onde peguei o Circular Sul sentido Portão.

A primeira parte do trajeto foi tranquila, sem maiores percalços, mas ao sairmos do terminal do Pinheirinho, um senhor que parecia ter mais de 60 anos colocou a mão em cima da minha na barra de ferro. Tentei encontrar razoabilidade no gesto – o tipo de cálculo que me vi fazendo muitas outras vezes na vida – e deslizei os dedos, certa de que se tratava de uma coincidência, mas fui acompanhada, então fiquei lá parada, tentando justificá-lo o quanto pude antes de forçar uma saída. Quando finalmente fiz um movimento para me desvencilhar, ele pressionou a minha carne com força e me olhou fixamente. 

Passamos o terminal do Capão Raso. O ônibus estava lotado e eu era menor de idade, mas ninguém tentou intervir. A essa altura eu já estava pálida de dor e medo, e me sentia invisível. Foi graças aos sacolejos do biarticulado que ele soltou a minha mão por tempo o suficiente para que eu pudesse andar. Saí pedindo licença às pessoas com ele na minha cola. Quis gritar mas não o fiz porque fui ensinada a não dar escândalo. Quis chorar mas não o fiz porque fui tomada por um instinto de sobrevivência. Quis pedir ajuda mas não o fiz porque não havia materialidade para uma acusação. Sentimentos são subjetivos, não são? 

Assim que chegamos ao terminal do Portão, apertei o passo e fugi pela porta 2. No meio da plataforma, ele me agarrou e disse: vamos conversar? Eu estava em pânico e nem sabia o porquê. Só deu pra balançar a cabeça e sair correndo sem olhar pra trás. No decorrer dos anos tentei não pensar no que aquilo significava. Nunca contei pra ninguém em casa, porque a minha liberdade foi custosa demais para colocar tudo a perder. 

Só retornei a esse dia durante a leitura do terceiro capítulo de “Recordações da minha inexistência”, livro de Rebecca Solnit lançado este ano no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Isa Mara Lando. A partir da página 72, a escritora e jornalista feminista narra a noite em que foi perseguida depois de uma festa de réveillon. Ela tinha 21 ou 22 anos e caminhava sozinha em uma rua escura de Maryn County, condado da Califórnia. Mesmo que houvesse muito espaço vazio, um cara grandalhão não parava de andar atrás dela. 

Ela atravessou pra lá e pra cá enquanto o sujeito refazia cada passo que ela dava. Rebecca poderia ter sido estuprada, mas outro homem parou o carro e ofereceu carona. Confusa, ela fez um breve cálculo mental e pulou no banco do passageiro. Por sorte, o motorista era decente e validou o que ela estava sentindo antes de deixá-la em casa: “Passei por você lá atrás e pensei que não era da minha conta. Mas depois pensei que parecia um filme de Hitchcock, então voltei”, ele disse.

Apesar dos contextos distintos e da distância temporal e geográfica, foi a subjetividade das emoções que me aproximou da escritora. Eu sei exatamente como é me sentir dentro do filme de algum homem cuja arte consiste em matar mulheres para entreter outros homens, e assim como ela, eu me coloquei em dúvida quando fui acossada por um estranho. Mas se fosse hoje, eu não me questionaria.

Representatividade

Rebecca Solnit tem a idade da minha mãe mas viveu muito do que foi negado à minha mãe. Primeiro porque teve uma formação universitária, coisa rara entre as mulheres brasileiras da mesma faixa etária que conheço, sobretudo no grupo social ao qual pertenço. Segundo porque escolheu um modo de vida que a mantivesse à margem da norma: em vez de se casar, investiu energia na própria carreira e chegou aos 60 anos com dezenas de livros publicados. 

O livro que me acompanhou no último feriado guarda as memórias de uma mulher que ajudou a popularizar o feminismo. Graças a ela, aprendemos o que é mansplaining (embora ela não tenha cunhado o termo, ao contrário do que dizem por aí, é bom anotar). Graças a ela, aprendemos a problematizar o patriarcado. Graças a ela e a tantas outras mulheres corajosas, aprendemos que não estamos lidando com problemas isolados: o machismo é estrutural.

Ao escrever na primeira pessoa, Rebecca mostra que não existe teoria feminista descolada da vida cotidiana e contribui para a desconstrução do sujeito universal que durante a maior parte da história dominou a academia, o jornalismo e a literatura. A potência da obra reside justamente na sensação de proximidade e identificação que a escritora é capaz de promover. As recordações não são minhas, mas eu me vi dentro da narrativa diversas vezes.

“Recordações da minha inexistência” é um livro vivo e testemunha o poder do entrelaçamento entre ativismo e arte. Se você é mulher, prepare-se para fazer um mergulho nas próprias memórias, reviver o ódio e curar com poesia. Como é bonita a representatividade. 

Serviço

Recordações da Minha Inexistência, de Rebecca Solnit. Tradução de Isa Maria Lando. Companhia das Letras, 264 páginas, R$ 64,90.

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