A herança dos Poetas Mortos é um slogan tatuado no braço

O carpe diem continua sendo tatuado em braços e ombros de meninas de 20 anos e segue sendo pobremente examinado

Em 1989, o filme “Sociedade dos Poetas Mortos” produziu o lema que aqueles tempos pediam: carpe diem ou “aproveite o dia”, sendo a palavra dia empregada aqui como sinônimo de tempo presente. A menor e mais concreta das divisões do tempo que usamos para medir nossa vida. Os anos 80 tinham sido marcados pela figura do yuppie, o sujeito (quase sempre um homem branco) que trabalhava muito para ganhar dinheiro e ostentar símbolos de status.

O yuppie era o anti-hippie. No arremate do século XX, com o fim da Guerra Fria e seus símbolos (o comunismo e a URSS, o Muro de Berlim), com o “fim da História”, novos mitos se faziam necessários. O que seria do ser humano sem um mito para lhe indicar o caminho a seguir sem ter que refletir… Pois bem: adotamos o mito do carpe diem.

Os jovens adultos da época foram fortemente influenciados pela crença no “viver o presente”, algo que estava no ar, que surgia como consequência das trajetórias das gerações anteriores. Não inventamos nada. Herdamos o que a trajetória humana foi construindo e caiu no nosso colo. Cada geração é o resultado de uma construção coletiva que veste como se fosse a camisa nova que foi cortada e costurada exclusivamente para ela.

Podemos supor que frase latina resgatada pelo filme teria passado despercebida em outras décadas ou teria sido lida de forma diferente. Em 1989, foi entendida como um convite à busca da realização pessoal em oposição à submissão total às responsabilidades; a aceitação do risco em contraste com a busca da segurança material. A ideia de um emprego para a vida toda começava a desmoronar e as pessoas acreditavam estrear uma nova forma de desapego sem notar que a economia, sempre um passo à frente, não precisava mais de trabalhadores fiéis.

A onda não morreu na praia. Recuou e avançou e quem agora está na praia nem imagina tudo o que a onda já tocou. Quem está na praia hoje, os filhos adultos da minha geração, levam o carpe diem ainda mais a sério do que nós. Porque nós ensinamos assim, nós naturalizamos a ideia de que aproveitar a vida é nossa primeira obrigação. É a regra. Quando escrevo isso, penso na geração que vive sem emprego fixo, sem contribuição à previdência social (quer algo mais oposto ao carpe diem do que pensar na aposentadoria?), sem planos de comprar a casa própria, sem medo de deixar o filho com os avós para passar 15 dias em Marraquexe. Parece até que falo dos hippies, mas esta geração não é nem um pouco hippie. Eles vão se arranjar, com perdas e ganhos em relação à geração de seus pais, como sempre acontece.

O carpe diem continua sendo tatuado em braços e ombros de meninas de 20 anos e segue sendo pobremente examinado. Dele só se tira a mensagem óbvia: a ideia de que o dia de hoje deve ser desfrutado como uma fruta madura. O verso de Horácio dizia algo sobre “colher” o dia agora já que amanhã ele terá passado do ponto. Não vou comentar as intenções de Horácio, que não conheço o suficiente. O que me chama a atenção é o que fica de fora da leitura mais difundida do carpe diem.

Implicitamente, valorizar o presente significa admitir nossa fragilidade e inépcia diante do fluxo da vida. “Não confie no futuro” é o verso seguinte de Horácio. Não confie no futuro porque ele não lhe pertence. Porque nem você será o mesmo depois de amanhã. Porque talvez você não esteja mais aqui. Abordar o presente como única realidade observável e medianamente controlável exige humildade. É a admissão da nossa vulnerabilidade enquanto organismos vivos e da nossa miopia enquanto sociedades. Convivi com algumas poucas pessoas que tinham essa postura diante de cada novo dia – todas eram excepcionalmente idosas e encaravam cada dia como um regalo que mereceram nem sabiam por quê.

Para os muito jovens, essa atitude é quase impossível porque o futuro pertence a eles, no sentido de que o fim, a morte, é inconcebível; a decadência física é um destino longínquo para quem tem 20 anos. Sendo assim, para os meninos e meninas de hoje, assim como para os poetas mortos que despertaram com as provocações de Robin Williams em 1989, carpe diem tem um único significado: vamos à festa, já! – e aqui não emprego “festa” literalmente, mas como situação prazerosa e livre de amarras. De novo, o desvio: o que poderia conduzir à humildade diante de nossa fragilidade conduz à arrogância de quem acredita poder tudo. O que não é uma novidade porque jovens normalmente carregam um traço de arrogância, em qualquer geração. A longevidade de carpe diem como slogan é uma prova disso.

Ocorre-me que o trunfo de Robin Williams no papel do professor de literatura era a tristeza que sempre carregava nos olhos, até quando fazia graça. Ele parecia ter em mente todos as advertências contidas em carpe diem, mesmo as mais sombrias, mas deixava seus alunos entenderem uma coisa de cada vez.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “A herança dos Poetas Mortos é um slogan tatuado no braço”

  1. Foi o primeiro filme que assisti no cinema.
    Dead Poets’ Society, Sociedade dos Poetas Mortos

    Interpretação da arte é muito individual. Para mim, o filme significou e significa ainda, quebrar tabus e sair da rigidez de normas que mantém o abuso, o patriarcado e o status quo.

    Da queda do muro de Berlin ao rapaz que ficou na frente do tanque na China, anos 80 foram anos de muitas dificuldades e mudanças no mundo.

    Sinto saudades do ator Robin Williams – que se suicidou enforcado. Daí o filme me trás boas lembranças de quando ele era vivo.

    O movimento europeu DIEM25 (Democracy In Europe Movement 2025), com o esquerdista Yanis Varoufakis como fundador, usa “carpe DIEM” como saudação dentre seus membros.

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