É e-vidente que você vai ligar

Mário estava ao volante com o cotovelo esquerdo apoiado na janela aberta e pensando na vida. Gostava de fazer isso, mas logo não poderia mais. Sem um emprego, não haveria dinheiro para a gasolina e ele teria que achar um jeito novo de refletir suas misérias. Era uma pena, porque o carro era perfeito pra pensar na vida: tinha o rádio para escutar música, o vento de fora, um paninho no painel que ele usava de um lado pra tirar o suor da testa, do outro para limpar os óculos. Foi nesse dia com cara de derradeiro que ele viu o gigantesco outdoor. Nele a imagem de uma mulher nos seus cinquenta e muitos anos, olhando pra frente por cima de um óculos pequenininho em formato de meia lua. Do seu lado em letras brancas, que tinham bastante destaque:

“Está precisando saber o futuro DE VERDADE?

Vidente Laurinha d’Alcântara Tavares

conta tudo pra você

É e-vidente que você vai ligar”

Ele meio que riu, meio que bufou, pensando nas pessoas que caiam nesse triste truque que enganava inocentes há milênios. “Ainda tem muito trouxa nesse mundo”, pensou Mário, imaginando o custo de um outdoor numa avenida movimentada como aquela. E era uma pena que fosse um truque, imaginando tudo o que gostaria de saber sobre os mistérios do seu futuro. Ainda não era casado, desempregado, tinha dúvidas sobre pra onde seguir e acabara de gastar as últimas reservas financeiras com um coach quântico que, surpreendentemente, não tinha adiantado pra nada.

Então, será que…

Toca o telefone. Não apareceu o aviso de “Possível SPAM” na tela do celular, mas é um número que ele não reconhece. Atende pelo bluetooth do carro.

– Alô?

– Aqui é Laurinha.

– …Oi. Quê?

– Laurinha. Pra quem você vai ligar.

– Desculpe, eu… É de algum lugar onde deixei currículo?

– Mário, aqui é Laurinha d’Alcântara Tavares. Você estava pensando em ligar, só que quando você finalmente decidisse seria uma e meia da manhã e eu estaria dormindo. Eu perderia a sua ligação, você comentaria com o Júlio sobre isso no sábado e eu acabaria perdendo dois clientes. Achei melhor ligar.

– Mas como…

– Mário, faz um favor?

– …o quê?

– Pisa no freio AGORA!

Num impulso, Mário pisa no freio com força e recebe toda aquela chicotada da inércia, agradecendo o hábito de sempre estar com o cinto.

– Olha, não sei quem é você, mas…

Ele vê, surgindo como vindo de debaixo do carro, um lindo labrador amigável, olhando feliz para o motorista que não o atropelou.

– Como você…

– Deixa ele entrar no seu carro, Mário. O coitadinho tá perdido.

– Mas… mas, dona Laura…

– Me chama de Laurinha. E chama o cachorro de Xexéu.

O incrédulo Mario abriu a janela, começou a falar “vem Xéxeu” entrecortado por assobios, abriu a porta e o cão pulou pra dentro. Logo Mário era acarinhado por língua e patas festivas.

– Dê uns três tapinhas no banco de trás que ele vai pra lá. Aproveite e clique nesse endereço que te mandei no Whats e siga pra ele.

Num misto de embasbacamento e torpor, Mário seguiu as instruções. Xexéu ficou bem calminho no banco de trás, olhando pela janela e, de vez em quando, lançando um sorriso em direção ao retrovisor.

– Dona Laurinha, você ainda está aí?

– Sim, Mário. Vou ficar com você até você chegar no seu destino. Enquanto isso eu posso aproveitar e tirar suas dúvidas.

– Então… Minhas dúvidas aumentaram bastante nos últimos minutos e eu…

– O trajeto é bem curto. Tem certeza que prefere gastar esse tempo tentando entender o que está acontecendo, sem nenhum sucesso, em vez de descobrir coisas sobre o seu futuro?

– …acho que eu prefiro tirar minhas dúvidas.

– Ótima decisão. Nesse ponto de divergência do continuum do espaço-tempo fraccionado, eu tinha dúvidas sobre a sua escolha efetiva.

– Oi?

– Não vai dar tempo mesmo, Mário. Mas falemos de amor.

– Tá.

– Não ligue pra Carmela, nem por amizade.

– Mas o quê? Ela é uma grande amiga.

– Ela é uma ex-namorada que carrega ressentimentos. Assim como você. Continuar a alimentar essa conexão leva a um casamento fracassado no quinto ano com uma briga judicial pela guarda das samambaias da sala.

– Credo. Mas então…

– Não, nada de Vanessa.

– Mas por que não a Vanessa?

– Porque quando você pedir ela em casamento, na quarta-feira de cinzas em Olinda daqui uns dois anos…

– … que foi onde a gente se conheceu, que ideia boa.

– … ela vai perceber que você não é o homem da vida dela, apenas uma longa ressaca depois de um carnaval fora de casa. Sua amada ainda virá.

– Ok… E a minha saúde?

– Não, você nunca mais poderá voltar a fumar.

– Mas eu tenho feito exercícios e comido bem!

– Comer uma cenoura crua por semana não regulariza todos os outros alimentos processados e condimentados. Francamente: descer as escadas do prédio pra buscar o correio é exercício?

– Eu tenho sentido minha bunda mais firme.

– Mário, longe do cigarro. Pra sempre. Aliás, no próximo sinal vermelho, pega a garrafinha de água da sua bolsa e dá um pouco pro Xexéu.

Veio o cruzamento com sinal vermelho. Mário deu a água pra Xéxeu que, realmente, parecia extremamente sedento.

– Chega de água.

– Mas tadinho, ele tá com sede.

– Ok, eu avisei.

O sinal se abre. Xexéu fica ainda mais sorridente pelo retrovisor

– E o meu emprego?

– Mário, você mandou currículos pra tantos lugares diferentes que, sinceramente, eu nem sei que futuro você quer.

– Eu quero ser feliz.

– Homens conseguem ser felizes afundados em bebida e caídos em vielas. Eu quero saber qual a reação de festa que você deseja.

– Reação de festa?

– É um parâmetro importante de felicidade, porque nós nos importamos com o que os outros pensam da gente à primeira vista. Imagine que você está numa festa, uma pessoa que você não conhece pergunta a sua profissão. Qual a reação que você gostaria que essa pessoa tivesse? Seja sincero. Você quer que ela pense, imediatamente, que você é rico? Que você é criativo? Que você é o quê?

– Quero que… A pessoa ache que o que eu faço é único e, apesar de respeitar, ela não conseguiria fazer isso.

– Hummm… Bom, você poderia ter sido médico oncologista, mas na semana passada você teria que ter chego atrasado no dentista e lido uma revista velha de lá.

– Se puder não ser médico, eu agradeço.

– Pode sim. O GPS tá falando que é nesse ponto, mas você pode parar duas casas pra frente. Bata palmas, que a campainha não está funcionando.

– Nessa casa amarela?

– Sim, você chegou ao seu destino.

Ele desce do carro, bate palma. Surge uma mulher linda, com o seu cabelo crespo pra cima e os olhos meio marejados, estranhando a presença de Mário. Ele aponta pra Xexéu dentro do carro pra escutar o maior grito de felicidade de sua vida. Mário abre a porta de trás e o cachorro corre em direção da dona, pulando em seu colo completamente sem noção do próprio peso. A dona do cachorro está muito agradecida, eles conversam por muitos minutos, ela dá um cartão pra ele. Mário faz um carinho em Xexéu, que parece estar sorrindo ainda mais, e volta pro carro.

– Como foi a devolução do cachorro?

– Foi ótimo, dona Laurinha. A Samy é incrível. E ela trabalha numa ONG que cuida de refugiados, me deu um cartão e me pediu pra passar por lá amanhã que talvez eles tenham um trabalho pra mim.

– Fico contente. Últimas coisas dessa ligação: meus dados bancários já estão no seu telefone. Não precisa me pagar agora, deixa pro dia 16 do mês que vem.

– Deixa eu ver se eu recebi… Nossa, que caro!

– Você sabe quanto custa um outdoor numa avenida movimentada?

– Não está mais aqui quem falou.

– Vou te pedir pra maneirar na caipirinha de kiwi na primeira festa da firma. Não seria nada grave, mas ia atrasar em alguns meses a sua história pessoal com a Samy.

– Com a…? Muito, muito obrigado dona Laurinha. Eu agradeço demais da… que cheiro é esse?

– O Xexéu mijou no banco de trás.

– Não acredito!

– Bom, eu avisei…


Para ir além

Muito além dos mullets do MacGyver

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