Mudança de currículo mostra o que Ratinho pensa da educação

Governo reduz carga de Sociologia, Filosofia e Artes, pouco depois de militarizar escolas

Muito antes de ser preso e se transformar em um pária social, Beto Richa cometeu um deslize que ele mesmo classificaria como seu “primeiro erro” na política. Em uma entrevista à rádio CBN, sobre a exigência de ensino superior para o ingresso na polícia, Beto explicou por que era contra:

“Outra questão é de insubordinação, uma pessoa com curso superior muitas vezes não aceita cumprir ordens de um oficial ou um superior, uma patente maior.”

A reação foi imediata. As próprias associações de PMs consideraram a fala “desastrosa”. Evidente: muita gente concorda com o ex-governador e acha que instrução e cultura são o caminho para a desordem e a balbúrdia. Alguns dos mais ferrenhos adeptos desse tipo de pensamento hoje estão no Palácio do Planalto e no MEC.

A ideia de que instruir a população é ruim vem de muito longe. Em regimes escancaradamente autoritários, isso é dito às claras. Não é à toa que a frase “Quando falam em cultura, saco logo minha pistola” ficou associada a Göring e Goebbels (na verdade, a frase era de uma peça de teatro de um autor nazi).

Na democracia, ninguém pode falar isso assim abertamente, pega mal. Mas nem por isso a associação entre instrução e pessoas fora de controle deixa de existir na cabeça dos governantes.

O atual governador do Paraná, Ratinho Jr., jamais cometeu a gafe do antecessor, de quem foi secretário. Mas seus atos à frente do governo mostram que ele está realmente interessado em um ensino menos libertador.

Em parceria com seu secretário da Educação, Renato Feder, um radical do liberalismo que já defendeu a extinção do MEC e de todas as escolas públicas brasileiras, Ratinho promoveu a toque de caixa uma reforma que retira do Ensino Médio metade da carga horária de trÊs disciplinas fundamentais: Sociologia, Filosofia e Artes.

No lugar, os alunos terão aulas de educação financeira, para aprender tipos de juros, por exemplo. “O aluno vai aprender sobre endividamento, a controlar as despesas, calcular juros… Enfim, vai poder ajudar no planejamento financeiro da família”, disse o secretário.

Os alunos precisarão mesmo aprender a contar centavos: entre outras coisas, ficarão com maior dificuldade para passar nas melhores faculdades, já que muitas delas, como a UFPR, cobram conhecimentos de Filosofia e Sociologia no vestibular.

Professores das áreas afetadas também perderão aulas, num momento de recessão.

Mas não vamos cometer o mesmo erro de Ratinho e Feder, e discutir só aquilo que é pragmático. Afinal, por mais que isso não seja dito, há muito mais por trás da decisão do governador.

Ratinho vai conseguindo transformar a escola num lugar em que a hierarquia é mais importante do que o conhecimento do mundo, e em que obedecer é mais importante do que pensar

Trinta anos atrás, Caetano e Gil já diziam do pânico mal dissimulado da classe política diante da “ameaça” de democratização do ensino de primeiro grau. De qualquer plano “que pareça fácil e rápido” para tirar os alunos da ignorância.

Claro, num mundo em que se fala sem rubor nas faces em Escola sem Partido, provavelmente a letra de Haiti nem seja permissível nas salas de aula. Nem por isso soa menos verdadeira.

Filosofia e Sociologia são duas disciplinas essenciais para a compreensão do mundo em que vivemos. Uma trata de todos os questionamentos realmente importantes da vida; a outra, das engrenagens que fazem nosso mundo social ser o que é.

Quem não quer que os alunos pensem o mundo? Quem não quer que eles aprendam o modo como ele funciona? Talvez as pessoas que estejam ganhando com o mundo exatamente como ele é, com seus problemas e desigualdades…

O argumento de quem quer a moçada só ralando e sem pensar em geral é o mesmo: o que importa é aprender português e matemática. Não se diz o objetivo, que é manter o filho do trabalhador na mesma condição em que nasceu. Destiná-lo a ser, por mais uma geração, ferramenta de um mundo que não domina e que não lhe foi explicado.

A diminuição da grade de Artes vai na mesma balada. Talvez nada neste mundo seja mais libertador. Pablo Picasso, gênio maior do século passado, dizia que se enganava quem achava que quadros eram para enfeitar paredes: eram armas, dizia ele.

No mínimo, são armas contra a vida tediosa, contra a vida sem imaginação de quem só aprende as disciplinas instrumentais e se vê fadado a repetir o que vê, a seguir ordens de superiores.

Não é de estranhar que tudo isso aconteça no mesmo momento em que o governo militariza mais de uma centena de escolas Paraná afora. Num só mandato, Ratinho vai conseguindo transformar a escola num lugar em que a hierarquia é mais importante do que o conhecimento do mundo, e em que obedecer é mais importante do que pensar.

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