Os casos de racismo que marcaram Curitiba em 2020

Somente este ano, quatro grandes casos de injúria racial ocorridos em Curitiba ganharam repercussão

O assassinato bárbaro do homem negro João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, no estacionamento de um supermercado da rede Carrefour, em Porto Alegre, em meados de novembro, foi o desfecho extremo, mas não isolado, de um conjunto de práticas criminosas persistentes em todo Brasil – sem excluir Curitiba. De incitações contra vereadora eleita a sentença questionável do Judiciário, casos de racismo e injúria racial continuam a se acumular na capital paranaense em tons explícitos de intolerância e preconceito estrutural, que vítimas afirmam serem mais comuns do que se imagina.

“O racismo é forte em todo o Brasil, é institucional. Mas Curitiba é segregacionista. A gente que vive aqui acaba naturalizando algumas vivências e eu consegui perceber o quanto de violência eu naturalizei a partir do momento em que eu tive a oportunidade de sair de Curitiba e voltar para esse contexto de violência. Tem lugares que você realmente não vai ver negro. Essa vivência de a pessoa não atender em loja, de o segurança ficar perseguindo, isso tudo é cotidiano, eu vivi isso por muito tempo”, conta a historiadora e professora Carol Dartora (PT), primeira mulher negra eleita para a Câmara Municipal de Curitiba, no pleito deste ano.

Com mais de oito mil votos recebidos – o terceiro maior volume entre os candidatos –, Dartora assumiu o cargo neste mês. Com o apoio de advogados populares, ela vai levar à Justiça mensagens racistas recebidas ao longo da campanha, muitas das quais foram postadas nas suas redes sociais.

“Na campanha eu já fazia denúncia de que Curitiba nunca teve uma vereadora negra e aí começou ‘e daí que nunca teve uma vereadora negra?’, ‘o que é que tem?’, ‘o que isso significa?’, ‘se os negros não se esforçam, ninguém é culpado’. Agora nem estou conseguindo acompanhar muito as minhas redes sociais, mas sei que se eu for lá olhar agora, vou encontrar.

Além das mensagens, a vereadora também pretende investigar a origem de uma ligação recebida logo após as eleições. A chamada foi por volta da 1h e, do outro lado da linha, um discurso de negação se materializou em ataque. “Atendi porque, desde a eleição, muita gente está me ligando. Eu estava acordada e a ligação era nesse sentido de ‘eu sou daqui de Curitiba e você está falando desse negócio de racismo e isso não existe aqui. Você está acabando com nossa vida’. Meu marido conseguiu gravar o final, mas a gente nem sabe como se armar direito”, conta.

Segundo Dartora, a intenção ainda é criar, com o apoio de entidades como o Instituto Marielle Franco e Terra de Direitos, uma rede de proteção a parlamentares vítimas de preconceito e ameaça, como foi o caso da vereadora Ana Lucia Martins (PT).

Em dezembro, a vereadora também recebeu uma ameaça de morte via Internet. Num texto que foi enviado também a outros políticos negros e LGBT, a pessoa afirmava que iria matar Dartora, depois de vários insultos racistas. O caso foi levado à polícia.

Casos que se repetem

Carol Dartora terá de conciliar as atividades parlamentares com o doutorado em Educação que cursa na Universidade Federal do Paraná (UFPR), sob orientação da pedagoga Lucimar Dias – negra e também vítima recente de racismo em Curitiba.

Em março de 2020, um dia após ter recebido uma homenagem na Câmara de Vereadores de Curitiba por seu trabalho na defesa das mulheres negras e da Igualdade Racial, a docente foi acusada de furto por três funcionários de um supermercado onde havia feito compras. Dias usou uma ecobag para levar os produtos das gôndolas até o caixa e, segundo os funcionários que a interpelaram após deixar o estabelecimento, não teria pagado por toda a compra. A abordagem na rua foi truculenta, e a professora teve de mostrar que todos os itens que carregava constavam na nota fiscal.

“Ao retornar à loja, descobriu que aquilo tinha nome e era um velho conhecido dela: racismo. Não havia roubo, não havia imagem de câmera, não havia nada de verdade. Clientes, ao perceber o que ocorria, ajudaram Lucimar. Foram horas de discussão. As desculpas do estabelecimento só pioraram e escancaravam a cultura racista em que estavam imersos”, destacou, em nota de solidariedade à professora, a Associação dos Professores da Universidade Federal Do Paraná (APUFPR).

Um mês antes, em fevereiro, outro crime já havia repercutido na cidade. A estudante Isabella Cristina dos Santos, de 20 anos, foi agredida verbalmente por um motorista de aplicativo depois de cancelar a corrida. Os áudios foram enviados logo depois, carregados de palavrões e injúrias como “preta do c******”, “preta nojenta”, “escrava do c******”. O crime foi relatado pela estudante nas redes sociais e registrado na Polícia Civil. O Ministério Público do Paraná (MPPR) denunciou o caso como injúria racial no dia 20 de fevereiro, mas o processo ainda tramita na 10ª Vara Criminal de Curitiba.

Conselheira barrada

Racismo também foi o que a conselheira tutelar eleita em Curitiba Aline Castro, que é negra, entendeu como fator embutido em uma recomendação do MPPR para cassá-la do cargo, investida que também foi feita contra a colega Rosana Kloester. De um vídeo longo gravado pela dupla em comemorando à eleição, em dezembro de 2019, o MPPR e a Rede de Instituições de Acolhimento de Curitiba e Região Metropolitana (RIA) usaram os 26 segundos iniciais, em que se pode ouvir a expressão “Lula Livre” e palavrões, para considerar ambas sem “idoneidade moral”, portanto ineptas ao cargo.

As duas foram cassadas na esfera administrativa em um processo conduzido pelo Conselho Municipal da Infância e Adolescência de Curitiba (Comtiba), mas conseguiram reverter judicialmente a decisão. Em fevereiro de 2020, tanto Castro como Kloester tiveram a posse garantida por decisões liminares do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) e hoje integram a lista do Conselho Tutelar da capital.

“A discussão no âmbito judicial foi no sentido se pode um conselho cassar conselheiros ou conselheiras legitimamente eleitas com base em um exame da moralidade em específico. Você pode carimbar as pessoas como inidôneas em decorrência de um ato praticado na vida civil? Aí veio a discussão e por isso que judicializamos”, disse Felipe Lopes, um dos advogados das profissionais. Além de Felipe, a defesa de ambas também é feita por Tuany Baron de Vargas e Felipe Mongruel.

À época da cassação, Castro disse em entrevista ao Plural que considerava o racismo como uma das motivações para a movimentação que pretendia impedi-la de assumir o cargo no Conselho. Para ela, um dos piores momentos do processo foi ouvir que sua postura era “agressiva” – acusação que veio da promotora de Justiça Fernanda Nagl Garcez e que, segundo a conselheira, tratou-se de um ponto de vista exagerado e racista. “Estou acostumada, como negra que fala com sotaque, usa cabelão e tem que lutar para ocupar espaços nessa cidade”, afirmou à reportagem do Plural em dezembro do ano passado.

Foi também do Judiciário que, recentemente, um trecho de sentença repercutiu Brasil afora como um indicador de discriminação. Em agosto do ano passado, a juíza da 1ª Vara Criminal de Curitiba Inês Marchalek Zarpelon foi parar nas manchetes do país por citar a cor da pele de um réu acusado de roubo e furto ao argumentar sobre o aumento da pena. A condenação foi em junho, e parte do texto dizia: “Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente”.

Depois da repercussão, a magistrada se defendeu. Nas palavras dela, a frase foi retirada de um contexto maior e que “em nenhum momento a cor foi utilizada – e nem poderia – como fator para concluir, como base da fundamentação da sentença, que o acusado pertence a uma organização criminosa”. A conduta foi avaliada em processo disciplinar pelo TJPR, mas os desembargadores concluíram, por unanimidade, não ter havido racismo e o caso foi encerrado.

Com o arquivamento, a Seccional Paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PR) enviou manifestação ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pedindo “uma postura pedagógica por parte da Instituição”. “Por mais que a magistrada não tivesse a intenção de aumentar a pena do réu com base nessa característica física, o fato de tê-la mencionado de forma irrefletida é um indicativo de uma conjuntura social falha que precisa ser enfrentada e, nesta perspectiva, reclama um posicionamento objetivo e de caráter extensivo”, disse a entidade em nota enviada ao Plural .

Para Thayse Pozzobon, advogada do réu, a expressão empregada na sentença não é um reflexo direto do entendimento da magistrada, mas de um comportamento muito mais “generalizado” e comum que ronda os tribunais do Brasil – onde a falsa relação entre cor da pele e criminalidade ainda persiste.

De acordo com levantamento mostrado pela Ponte Jornalismo em setembro, somente a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro localizou, entre 1º de junho de 2019 a 10 de março de 2020, 58 casos de reconhecimento fotográfico que resultaram em prisões de pessoas inocentes, sendo 70% delas com pessoas negras.

“A gente não pode falar não a juíza é racista. A gente pode dizer que a sentença, o conteúdo que ela traz é racista. A juíza assinou a sentença, mas ela tem uma equipe que trabalha com ela. Acho que não devemos personalizar essa decisão, mas, sim, buscar entender o que ela representa no Judiciário, um Judiciário com racismo latente”, ponderou a advogada.

Volta por cima

O racismo que se manifesta nas entrelinhas em instâncias institucionais se dissemina com menos barreiras na esfera social. Foi o que sentiu a vida toda a doceira Janete Martins, de Araucária, na região metropolitana de Curitiba (RMC). Há três anos, ela sofreu uma série ataques racistas consecutivos e em pelo menos um deles a suspeita foi identificada. O processo tramita na Justiça e a expectativa é de que, no próximo ano, já haja uma decisão.

A acusação está relacionada a um episódio ocorrido em fevereiro de 2017, quando uma mulher foi à casa da doceira para fazer uma encomenda. Ao chegar, disse ter ficado surpresa pelo fato de a profissional “ser de cor”; ela deixou a casa logo em seguida, mas, com a ajuda de um retrato falado, foi localizada e hoje responde ao processo.

Além deste, pelo menos outros três ataques vitimaram a doceira, mas sem conclusão de autoria. Em um dos episódios, uma banana foi deixada ao lado de uma carta que trazia, em letras de recortes de revista, a frase “será que devo chamar você de fada dos doces ou dos macacos?”. 

“Antigamente se eu visse alguém sofrendo o que eu passei, tenho certe que iria reagir, mas não com tanta intensidade como agora. Eu sei o quanto dói, o quanto é difícil. Foi um período bem difícil de superação, precisei de tratamento psicológico porque foi um começo muito traumático”, relata.

Depois de meses de acompanhamento, Martins deu a volta por cima e entendeu que poderiam fazer do sofrimento uma bandeira de luta. Passou a dar palestras sobre racismo em escolas, disseminando o respeito e encorajando estudantes negras e negros a superar episódios tão difíceis quanto os que ela enfrentou.

“Qualquer coisa que passa hoje sobre racismo eu já consigo ler, assistir, mas naquela época, não. Tudo o que eu via me trazia de novo aquela história, tudo o que eu passei”, conta a doceira, que diz sempre ter convivido com o racismo. “Não é que isso não acontecia antes. Sempre aconteceu, o que é diferente é que agora chega ao conhecimento da imprensa. Por isso hoje a gente luta para conscientizar as pessoas. O que eu mais falo para os meus filhos é que a gente não pode baixar a cabeça jamais”.

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