É muito comum que as pessoas se refiram à morte autoinfligida usando frases como “fulano teve vontade de se suicidar” ou “beltrano decidiu tirar a própria vida”. Como alguém que já passou por essa situação, eu discordo em absoluto da forma como essas afirmações são feitas. E explicarei os meus porquês.
É preciso levar em conta que o tratamento de um transtorno mental, tido como um dos fatores primordiais que culminam no ato suicida, não costuma ser rápido. Não se dorme com depressão e se acorda sem ela. Ainda, se ela tem causas multifatoriais, o tratamento também depende de diversos esforços combinados: a medicação adequada (que pode demorar semanas ou meses até ser ajustada), a terapia, o apoio das pessoas próximas e, sobretudo, a resiliência do paciente.
E enquanto todas essas coisas vão se adequando e ganhando forma, o mundo não para, tampouco a dor. Muitas vezes se convive com ela 24 horas por dia, sete dias por semana. Eu, que tive o privilégio de contar com excelentes médicos, analistas e acesso aos medicamentos mais modernos da época, não passei incólume a isso. Os meus dias e as minhas noites de dor, inclusive física, começaram a virar uma coisa só, sem intervalos, descanso ou respiro.
Então, falar em “querer morrer” não é, para mim, uma verdade. O que se quer é cessar a dor. Ter uma folga no meio dessa maratona.
E vou continuar aqui usando a corrida como metáfora, pois ela pode ajudar a explicar ainda melhor o meu ponto. Quem corre ou já correu deve lembrar o quão difícil é no começo. Se corre por um minuto e a sensação é que correr por mais 30 segundos é algo completamente impossível. Vamos imaginar alguém com um bom preparo físico, mas que nunca foi treinado para correr e que, de repente e sem saber como, foi inscrito numa corrida de 10 km. Correu na base do susto, sem sequer olhar para trás. As pernas detonadas e os joelhos latejando.
Quando finalmente estava cruzando a linha, percebeu que ali mesmo começava mais uma corrida, dessa vez de 21 km. O desespero bateu, óbvio. Ele não teve tempo nenhum de descansar. Mal conseguiu se hidratar e ingerir o tal gel de carboidrato que alguém ofereceu, e teve de seguir caminho. Lá pelas tantas as câimbras começaram. A equipe médica da corrida tacou spray nas panturrilhas e ele voltou ao fluxo, aos trancos e barrancos. E conforme continuava, todo o corpo ia pedindo socorro.
A partir de um determinado momento ele só conseguia andar. Depois praticamente rastejava. A visão estava turva e a pressão baixíssima. O corpo estava prestes a colapsar. E, finalmente, quando ele conseguiu limpar o suor que encharcava os olhos e avistou a chegada dos 21 km, havia uma faixa onde se lia em letras garrafais “Aqui começa a maratona”.
É angustiante e é assim mesmo que alguém com transtorno mental se sente. Competindo contra si mesmo numa ultramaratona sem ter treinado para correr sequer 500 m. Na corrida da metáfora e na corrida contra o transtorno mental, a pausa e o descanso não tem a ver com desejo ou com escolha consciente, mas sim com a mais completa e absoluta exaustão física e mental.
Não uso essa metáfora como justificativa, mas como uma possível explicação, para que quem nunca sentiu nada parecido possa vislumbrar o que alguém que tem ideação suicida pensa. Eu posso afirmar, pela minha experiência e das diversas pessoas com quem convivi durante o meu tratamento, que ninguém com transtorno mental deseja deliberadamente morrer. O desejo é pelo fim da dor. Ou ao menos ter um intervalo, um descanso ou um respiro.
E eu levei muitos anos para entender isso e para poder me ver livre da culpa e da vergonha que carregava. É por conta desse entendimento, dessa absolvição de mim mesma, que consigo escrever sobre esse tema hoje.
Eu espero poder ajudar você, com essas palavras, a se entender, a indultar quem está em sofrimento. A continuar buscando ajuda e oferecendo apoio a quem precisa. Pois, ao contrário da nossa metáfora, a ultramaratona do transtorno mental tem uma linha de chegada possível e saudável.
Sobre o/a autor/a
Juliana Wisniewski
Juliana Wisniewski é Publicitária (UP 2004), Especialista em Comunicação Estratégica e Negócios (PUC-PR 2006), em Gestão Estratégica (UFPR 2013) e em Filosofia (Estácio 2018). Ama Labradores, Border collies, é uma cantora frustrada e, por um acaso da vida, tem depressão.