Precisamos falar de violência sexual intrafamiliar contra crianças e adolescentes: um manifesto da Liga Boqueirão

A cada uma hora 4 crianças de até 13 anos são estupradas no Brasil. Nossa comoção deveria ser constante, diária, proporcional ao tamanho do problema

Aos 10 anos uma menina engravidou, mas desde os 6 anos, ela era estuprada pelo tio.  

Espantosamente, a grande repercussão deste caso recente – apesar de estar longe de ser único – acabou tendo como foco a questão do aborto, e não a brutal violência sexual sofrida por uma criança durante 4 anos, que acabou resultando numa gestação. Ainda mais surpreendentes foram os caminhos que os debates tomaram, retirando quase que completamente do seu centro aquilo que deveria ser o grande cerne da questão: o intenso sofrimento de uma criança; violentada, ameaçada e silenciada por um adulto.

Contrariando o que se imagina no senso comum, observa-se que, na maioria dos casos, os agressores sexuais são pessoas conhecidas das vítimas e que estabelecem com elas algum tipo de relação de confiança, de amizade ou de segurança.

Nas famílias em que ocorrem abuso sexual, ou mais propriamente incesto, são comuns os conflitos de papéis entre os membros. O que se percebe é uma estrutura rígida e disfuncional, onde o poder patriarcal é demonstrado através de força e coerção. Os limites não são respeitados, quer sejam físicos, sociais ou interpessoais. Há uma transgressão continuada de normas sociais por todos os membros da família, num misto de silêncio, conivência e cumplicidade, regido por ameaças veladas.

A violência sexual é um fenômeno complexo, atravessado por aspectos culturais, sociais e, às vezes, psicopatológicos. Isso faz com que suas manifestações sejam de difícil compreensão para aqueles que não têm familiaridade com o problema.

Um dos maiores e mais frequentes equívocos é acreditar que, uma vez abusada, a vítima pedirá socorro imediatamente. Na realidade, isso é muito incomum, em especial quando a violência é intrafamiliar ou cometida por conhecidos, pessoas próximas. A revelação do abuso sexual é um processo longo e difícil, que exige da vítima coragem e discernimento para enfrentar tudo o que surge a partir da sua denúncia. No caso de crianças pequenas isso se torna ainda mais complicado, já que, quanto menor a criança, menos ela compreende que aquilo que fazem com ela é errado. É quase regra que elas levem muito tempo, anos, até que consigam sair do silêncio; muitas vezes nunca saem. Há ainda outros fatores que colaboram para isso, dentre eles, ameaças que o abusador faz à vítima ou à sua família. Imaginem uma criança de 6, 7, 8 anos, ouvindo de um adulto que, se ela não se calar, ele a matará ou a seus pais. Será então razoável duvidar ou, pior, culpabilizar uma criança dos abusos sofridos tendo como argumento o seu silêncio ou a demora em revelar?

Nesses casos, não podemos realizar julgamentos sem conhecer especificidades como essa. Situações de violência sexual geram nas vítimas comportamentos muito diferentes daqueles que esperamos quando estamos fora da situação. Pelo fato da sociedade, em geral, não conhecer as dinâmicas do abuso sexual, há uma tendência em “ler” o caso pelas lentes do senso comum. Essa leitura extremamente distorcida não é sem consequências, sendo que a pior delas é imputar à vítima algum tipo de culpa, responsabilidade pelo que ela própria sofreu. Não encontrar apoio ou credibilidade na sua história é um dos mais fortes motivadores para o que se convencionou chamar de síndrome do silêncio, aquele mesmo silêncio que muitos questionam e utilizam como “prova” de culpa da vítima. Vale ainda lembrar que as crianças costumam tentar contar várias vezes antes que uma grande descoberta ocorra, mas também é comum que ela não encontre ouvidos dispostos a reconhecer tão terrível realidade.

No caso dessa menina, que infelizmente representa tantas outras, sua revelação veio por meio de uma gestação. Perguntamos: se esta não tivesse ocorrido, como estaria hoje essa criança? Haveria tantas pessoas ocupadas e debatendo fervorosamente a situação? É claro que não. Pois ninguém saberia da sua existência e talvez, neste exato momento, ela estivesse sendo abusada pelo seu algoz. Até quando precisaremos que as consequências desse tipo de violência sejam tão trágicas para que tenhamos coragem de levantar o tapete e encarar toda a sujeira que insistimos em não querer ver?

A cada uma hora 4 crianças de até 13 anos são estupradas no Brasil. Nossa comoção deveria ser constante, diária, proporcional ao tamanho do problema. E por que não é assim? Porque não conhecemos nossa realidade.

Não é apenas sobre o aborto que se precisa falar. É também, e principalmente, sobre as violências (principalmente a sexual) que acontecem dentro das casas, com as pessoas que têm uma relação de confiança com as vítimas, que precisam sair da invisibilidade. Será que a discussão, centralizada apenas no aborto legal, não é mais um movimento para que se perpetue a violência?

Violência que ocorre no lugar em que ela deveria ser protegida! Violência que não pode, por um pacto de silêncio, ser comentada, alardeada, comunicada pela vítima. É nosso dever, como sociedade, emprestar-lhes nossa voz, até que ela tenha condições de usar a sua própria.

PRECISAMOS FALAR DE VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTE.

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