O que morre quando matam um rio?

Precisamos usar a tragédia que matou o Rio Doce para repensar o modo como cuidamos da água

“O que morre quando matam um rio?”.

Essa é a primeira das perguntas feitas em “Lavra” (2021), longa metragem que conta a história de Camila, geógrafa mineira que depois de migrar aos Estados Unidos, retorna para ver os efeitos do rompimento da barragem de rejeitos de Fundão (2015) e pesquisar os impactos da mineração na região do Quadrilátero Ferrífero, em Minas Gerais – que tem a mineração “cravada no nome e na história”.

Tal e qual é contado no filme, no dia 5 de novembro de 2015 ocorreu o rompimento da barragem de Fundão, construída e gerida pela Samarco S.A., em Mariana (MG).

Segundo o Laudo Técnico Preliminar do Ibama (2015), feito logo após o rompimento da barragem, os danos ambientais naquele momento compreendiam: mortes de trabalhadores da empresa e de moradores das comunidades afetadas; desalojamento de populações; devastação de localidades e a consequente desagregação dos vínculos sociais das comunidades; destruição de estruturas públicas e privadas (edificações, pontes, ruas etc.); destruição de áreas agrícolas e pastos, com perdas de receitas econômicas; interrupção da geração de energia elétrica pelas hidrelétricas atingidas (Candonga, Aimorés e Mascarenhas); destruição de áreas de preservação permanente e vegetação nativa de Mata Atlântica; mortandade de biodiversidade aquática e fauna terrestre; assoreamento de cursos d’água; interrupção do abastecimento de água; interrupção da pesca por tempo indeterminado; interrupção do turismo; perda e fragmentação de habitats; restrição ou enfraquecimento dos serviços ambientais dos ecossistemas; alteração dos padrões de qualidade da água doce, salobra e salgada; sensação de perigo e desamparo na população.

No momento da ruptura, a barragem armazenava 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, dos quais 34 milhões galgaram uma segunda barragem a jusante, e foram lançados na bacia hidrográfica do rio Doce, deixando um rastro de destruição até desembocar no Oceano Atlântico. O Parque Estadual do Rio Doce, primeira unidade de conservação de Minas Gerais, a maior floresta tropical do estado, foi diretamente atingido.

“Uma onda de lama tóxica atingiu a bacia do Rio Doce, engolindo duas comunidades, matando 19 pessoas e devastando toda a biodiversidade ao longo dos 650 quilômetros de extensão do rio até o mar”. Foi o maior crime ambiental da história do Brasil, e o maior crime ambiental com barragem de rejeitos de mineração no mundo.

O rejeito é um subproduto comum do processo de separação de minerais e metais valiosos do minério extraído que, geralmente, assume a forma de uma pasta líquida feita de partículas minerais finas, criada à medida que o minério extraído é triturado, moído e processado, um material altamente tóxico.

No filme Lavra, enquanto realiza sua pesquisa de campo, a personagem principal – Camila, entrevista pessoas das comunidades afetadas pelo rompimento de Fundão, investiga o impacto da mineração e presencia o rompimento da barragem de Brumadinho.

“Olha a água, R$ 5, mas vale R$ 1.000, a Vale matou um rio”, anuncia o vendedor de água mineral entre os carros. O motorista de aplicativo do carro onde estava Camila então conta-lhe que a água que abastece a população vem do Rio Doce contaminada, por isso muitas famílias fizeram poços artesianos em suas casas, mas, para beber e cozinhar, as pessoas compram água mineral.

Através da observação da mudança na paisagem, Camila reflete sobre pertencimento, desenvolvimento, extrativismo e justiça, entre outros temas contemporâneos relevantes. Uma obra crítica bonita e pertinente, narrada da perspectiva do Sul global.

A realidade do Rio Doce, no entanto, não é bonita. Segundo o Instituto Mineiro de Gestão das Águas, dentre os metais tóxicos que atingiram o Rio Doce com a ruptura de Fundão, em 2023, somente o cádmio apresentou teores abaixo do previsto para o Nível 2 da Resolução Conama nº 454/2012, todos os demais metais, inclusive o arsênio, apresentaram ao menos um resultado acima do padrão Nível 2. O relatório destaca que a Resolução não estabelece valores orientadores para os metais ferro, alumínio e manganês, em sedimentos.

Os resultados dos monitoramentos, especialmente de arsênio, ao longo da bacia do rio Doce em 2023, demonstram que a contaminação tenha tido origem no rompimento da barragem de Fundão. Os resultados relativos aos metais chumbo, cobre, cromo, mercúrio, níquel e zinco, indicam a existência de outras fontes de contaminação, para além do da ruptura da barragem da empresa Samarco S.A., em Mariana (MG).

No mês que abriga o dia mundial da Água – 22 de março, instituído pela Assembleia Geral da ONU através da resolução A/RES/47/193, no ano de 1993 -, propomos uma reflexão, celebrando a sobrevivência do rio Doce, cuja história remonta à colonização do Brasil e à dizimação dos “botocudos”, nome atribuído pelos colonizadores portugueses aos Krenak, no final do séc. XVIII, por conta dos botoques auriculares e labiais que usavam.

Na ontologia dos indígenas Krenak, todas as águas são entidades ancestrais, que devem ser honradas e cuidadas. Segundo Ailton Krenak, o rio que banha as terras de sua comunidade é o Uatu (ou Watú), um avô, que ainda vive, e que se comunica com eles em sonho.

Cerca de três meses antes da ruptura de Fundão, em agosto de 2015, foram concluídas as negociações que culminaram na adoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a “Agenda 2030”, uma agenda global para o desenvolvimento econômico equitativo, socialmente inclusivo e ambientalmente sustentável até 2030.

Dos 17 ODS (desdobrados em 169 metas) contidos na Agenda 2023, destacamos aqui os objetivos 6: “Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos”, e 14: “Conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável”.

Referências

GTR. Global Tailing Review. 2023. Disponível em: https://globaltailingsreview.org/about-tailings/. Acesso em: 22 mar. 2024.

HATJE, V., PEDREIRA, R.M.A., de Rezende, C.E. et al. The environmental impacts of one of the largest tailing dam failures worldwide. Nature. Sci Rep 7, 10706 (2017). Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41598-017-11143-x. Acesso em: 29 set. 2023.

INSTITUTO MINEIRO DE GESTÃO DAS ÁGUAS. Encarte especial qualidade das águas do rio Doce após 7 anos do rompimento da barragem do Fundão: 2015/2022. Belo Horizonte: Igam, 2023. Disponível em: http://repositorioigam.meioambiente.mg.gov.br/bitstream/123456789/4388/1/Encarte_Rio_Doce_7anos_FINAL.pdf. Acesso em: 22 mar. 2024.

LAVRA. Direção: Lucas Bambozzi. Brasil: Produtora: Trem Chic, Distribuidora: Pandora Filmes, 2021. Filme cinematográfico (101min). Disponível em: https://youtu.be/r3chyfPRK4s?si=hH_7kdRSmmmZaPui. Acesso em: 12 mar. 2024.

NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. Acesso em: 22 mar. 2024.

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