Lia – Capítulo 24

No Mercado Municipal os espaços são negociados. Isso vale, claro, para os donos das várias bancas e lojas, mas tem também sua validade para os frequentadores. Tudo ali é apertado, tudo meio caótico. Tudo é não somente apertado e caótico, mas capaz de induzir àquela, a menos curitibana das atitudes, que é a de roçar, relar, tocar e até trombar com os outros, quase inevitavelmente. Quase o tempo todo.

Era até por isso que a presença daquela loura de finos cabelos compridos parecia destoante. Porque ela como que deslizava entre as pessoas. Como que tocada por algum tipo de bênção que a isentava das condições normalmente impostas ao comum dos mortais. Tais como roçar, relar, tocar e até trombar com os outros. Quase o tempo todo. Quase inevitavelmente.

De se olhar para ela, parecia quase que as outras pessoas iam abrindo caminho, saindo da frente, águas-do-mar-morto ante o cajado de Charlton Heston. Esse tipo de coisa. Ela de fato inspirava essas imagens meio Cecil B. DeMille. Meio bíblicas.

E nem era que a nossa loura fosse especialmente linda. Nem especialmente feia. Nem especialmente coisa alguma. Fora essa aura, fora essa curiosa marca de perfeição em meio ao resto. Talvez fosse a roupa clara, que junto com o cabelo louro aguado lhe dava essa leveza meio etérea. Talvez (aposta ainda melhor) fosse a forma como caminhava. Com certa leveza, com certa certeza, sem titubear, sem passos atrás nem para os lados, sem parecer que procurava alguma coisa incerta e ao mesmo tempo sem dar a impressão de quem seguia rumo à única rota sabida. Sem aquele passo de cachorro vira-lata na calçada (que sempre parece ter um horário marcado em algum lugar, logo ali), mas sem também o olhar perdido da maioria dos frequentadores do Mercado, que parecem nem se dar conta das necessidades e rumos dos outros, cruzando-se e se atropelando. Roçando, relando, tocando e até trombando-se.

Ela não.

Com suas sandálias cor de palha, calça de linho branco e blusa azul de algodão, tinha o passo de quem simplesmente não era daquele mundo. De quem estava ali nem de passagem, mas de fato só marginalmente, quase nem estando. Ela não parecia querer comprar. Não parecia estar acompanhada. Não dava mostras de quem ia a algum lugar, não demonstrava querer nada.

Mas a multidão, ao vê-la, se afastava. E mesmo sem ter visto. Mesmo quem de costas, fazendo o que fazia, se via de repente no caminho da loura, por algum mecanismo de mola, de engrenagem mão divina, de repente parecia dar um pequeno passo para longe. E a loura passava. Desimpedida.

Mais de perto, viam-se os zigomas altos, rosto fino, olhos claros. Testa larga, sorriso leve, permanente. Beatífica, não era magra nem gorda. Nem alta ou baixa. Era leve, no entanto. Era exígua. Por isso o passar pelas frestas entre os corpos. Mas essa leveza, exiguidade, não era do corpo. Era quase mais, na verdade, do sorriso.

Quase.

E cheirava tão bem. Tão delicado, o perfume, mas definitivo. Não era flor, não era fruta. Mas era perfume, e era quem sabe o que lhe dava tais contornos de irrealidade. Além da roupa clara, passo firme, boca feita em só sorriso permanente. Além da certeza de que os mares se abririam sem nem bem pestanejar. Além de qualquer outra coisa. E foi só o verso de um poeta persa, o que de repente pareceu descrever não necessariamente a cena, mas a sensação causada pela cena. Meio inexplicavelmente.

A mesma coisa que fala com a rosa, dizendo que se abra, fala comigo, no meu peito.

Ou pelo menos foi essa a única coisa que a passagem da loura fez Lia lembrar.

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